Rafael Alves 13/08/2016
Como funciona a mente de uma pessoa esquizofrênica?
“Vou escrever uma história de fantasma agora”, ela datilografou.
“Uma história de fantasmas com uma sereia e um lobo”, datilografou mais uma vez.
Em A Menina Submersa, exploramos os recantos mais sombrios e as ruas sem saídas dentro da cabeça de uma garota incomum que, apesar de tentar viver uma vida comum, possui uma mente onde habitam sereias, lobos e uma misteriosa mulher chamada Eva Canning.
India Morgan Phelps, ou como usualmente é conhecida, Imp, ganha a vida como artista e escritora para manter sua casa em Rhode Island, junto com sua namorada Abalyn (uma garota transgênero) que trabalha fazendo resenhas de jogos de videogames para diversas revistas.
Imp nos introduz a sua história transcrevendo em um livro suas memórias para, de alguma forma, tentar organizar seus pensamentos e tornar a sua vida um tanto mais tangível. Logo de inicio, somos advertidos pela personagem: os fatos descritos por ela podem, ou não podem, ser reais.
"Aqui tem uma coisa que anotei nos dois lados de um guardanapo de uma cafeteria há alguns dias: ‘Nenhuma história tem começo e nenhuma história tem fim. Começos e fins podem ser entendidos como algo que serve a um propósito, a uma intenção momentânea e provisória, mas são, em sua natureza fundamental, arbitrários e existem apenas como uma ideia conveniente na mente humana. As vidas são confusas e, quando começamos a relacioná-las, ou relacionar partes delas, não podemos mais discernir os momentos precisos e objetivos de quando certo evento começou. Todos os começos são arbitrários’."
Com essa narrativa não linear e com uma mente não muito confiável, Imp datilografa em sua máquina de escrever seu dia a dia que se resume em conviver com a sua namorada, ouvir os discos antigos de sua mãe, apreciar obras de artes, escrever artigos para jornais, pintar a sua própria arte, visitar o psiquiatra e tomar suas doses controladas de remédios. Essas são suas principais armas contra a doença mental que também levou sua mãe e sua avó à morte.
Em uma de suas voltas noturnas habituais com seu Honda para distrair a mente e amenizar a ansiedade, Imp percorre o trajeto do que poderia tanto ser a rodovia 122 contorcendo-se ao longo do rio Blackstone, pouco depois de Millville, Massachusetts, quanto a Estrada do Covil do Lobo, a nordeste de Connecticut. Poderia tanto ser o verão quanto o outono. Poderia ser tanto o mês de Julho quanto o mês de Novembro. Pior, como podem existir duas versões dos acontecimentos? Isso significa conhecer não só a Eva, mas sua namorada Abalyn duas vezes também, e ela se lembra de claramente tê-las conhecido em ambas as vezes. E foram ambos, os dois ao mesmo tempo, e se ela considerar a possibilidade de todas as coisas não terem acontecido ao mesmo tempo, uma grande onda de ansiedade vai acometê-la e colocá-la em estado de paranoia e haverá muitas vozes em sua cabeça e ela fugirá do assunto para falar de outros aspectos de sua vida que poderia ser uma de suas conversas com a sua mãe, as superstições de sua avó para com os corvos, um dia tranquilo com Abalyn ou uma de suas idas à sua psiquiatra e se não for o suficiente a narrativa irá parar de forma abrupt-…
Por favor, caro leitor, aceite essas duas linhas de tempos como uma verdade factual. É como a mente de nossa personagem funciona, e é você quem deve se adaptar a isso. Se não aceitar isso, não tenho como contar essa história sobre fantasma a vocês sem entrar no mesmo estado de surto de Imp, não tenho como manter a resenha de forma linear e não conseguirei organizar meus pensamentos em palavras coerentes. Por favor, leitor, sinta as palavras de Imp e deixe a leitura fluir.
Voltando a falar sobre aquela noite, Imp encontrou uma garota observando o rio Blackstone. A garota estava nua, quieta e compenetrada na visão do rio. Com receio de deixá-la vulnerável e sozinha, Imp a acolheu para o carro e a levou para casa. Essa foi a primeira vez que conheceu Eva Canning. Como explicar para Abalyn a existência de Eva? Como lidar com a reação de sua namorada? Como a convencer de que sua mente traiçoeira a obrigou a tomar uma atitude para com aquela moça? Como convencer a si mesma? Aquela mulher estava calada o tempo todo, não a respondia, não reagia às suas tentativas de comunicação, não parecia demonstrar alguma reação ao que estava acontecendo e o mais perturbador de tudo era que, ao considerar a atual situação em que se encontrava, não aparentava estar em estado de choque.
A Menina Submersa é completamente cheio de referências. Há referências sobre músicas que são as únicas que Imp gosta, pois ouvia nos discos de sua mãe; há referências sobre obras literárias como Chapeuzinho Vermelho, O Despertar do Leviatã, A Pequena Sereia, A Divina Comédia e Moby Dick que possuem total relevância para a obra criada por Caitlín; Imp tem certa fixação por mulheres que tiraram suas próprias vidas como Anne Sexton, Diane Arbus e Virginia Woolf; e por falar em suicídio também há uma grande referência à Aokigahara, também conhecida como “A Floresta dos Suicidas”. Isso sem contar as obras de artes essenciais, como o quadro “A Menina Submersa” de Philip George Saltonstall e “Fecunda Ratis” de Albert Perrault. O mais curioso, de fato, é que ao pesquisarem essas pinturas você descobre que elas não existem. Exato, não existem. Pode procurar em ferramentas de pesquisa, tudo é uma invenção da mente da protagonista. O mais perturbador não é só o fato de tais obras não existirem, mas sim que na história elas são introduzidas de forma tão natural, precisa e com data numérica cuja mente de Imp tem o potencial excepcional de gravar que você toma aquilo como verdade e, quando menos percebe, está cada vez mais ligado à mente confusa e embaralhada de Imp. E, sem notar, não percebeu que pulei a narração da história para falar de outro aspecto importante dela quebrando a linearidade só para te jogar em um misto de informações. Até peço desculpas, não há como contar essa história de fantasmas a não ser dessa forma, mas fique comigo leitor… pois é exatamente assim que é a narração do livro e… preciso falar sobre India Morgan Phelps.
Preciso falar sobre o Capítulo VII.
"O fragmento solto da minha mente que está agindo como A Leitora está ansioso em saber o que aconteceu depois, embora ela deva compreender que somente tornarei pública a narrativa no meu próprio tempo, conforme ganho a coragem para fazer isso. Não estou disposta a acalmar a Tirania do Roteiro. As vidas não se desenvolvem em roteiros ordenados e o pior tipo de artifício é insistir que as histórias que contamos, para nós mesmos e uns para os outros devem ser forçadas a se conformar ao roteiro, narrativas lineares de a a z, três atos, os ditames de Aristóteles, ação elevada e clímax e ação decadente e, em especial, o artificio da resolução."
Para descortinar os mistérios envoltos de Eva Canning e definir uma linha linear e descobrir a verdade factual, nossa corajosa protagonista se rende ao canto da sereia, dispensa seus remédios e mergulha de braços abertos no mar de loucura da sua mente. Esse capítulo do livro marca a carreira da Caitlín R. Kiernan como autora e faz jus ao Prêmio Bram Stoker que possui. Não há nada que se iguale. Somos afogados em um mar de confusões e discorrimentos, observamos detalhes aleatórios, entramos num transe de surto, nos assustamos com esquinas escuras e desertas, nos deparamos com ruas cheias de sombras e formas distorcidas. Descobrimos sobre a noite de novembro, A Segunda Chegada de Eva Canning na Estrada do Covil do Lobo que tecnicamente era a Estrada Valentine, mas não importa, ou importa? Então há somente uma Eva, há somente uma história, seria em Julho ou Novembro? Imp tem que se afundar mais em sua mente. Mas ela me diz que é uma mulher morta. Ela é uma mulher morta e louca. Imp acha que o número sete é um número sagrado. É, não é? Por isso ela exibe pelas páginas que datilografa vários números setes contra os fantasmas que lotam sua cabeça, e contra o diabrete que ela é, contra demônios, lobisomens, sereias, caçadores e mosquetes, amantes perdidos, mulheres que não podem realmente se chamar Margot e garotinhas que não tem o nome de Chloe, contra o ricochete, as consequências, o refluxo, as sementes de mostarda. Contra a ira e ausência dos Messieurs Risperdal, Depakene e Valium, todos os quais ela negligenciou da pior maneira possível, deixando seus cavalheiros esmorecerem, rejeitados e inúteis. Você acha que Imp deve tentar se afogar na banheira ou cortar os pulsos? Não importaria, de uma forma ou de outra, ela seria silenciada. Mas ela sabe que não pode, ela precisa descobrir o que realmente aconteceu. Ela precisa encontrar a raiz disso. E ela precisa contar pra você, leitor, o desfecho dessa história de fantasmas. Você precisa descobrir o que há no passado de sua mãe Rosemary e de sua avó Caroline, você precisa dar ouvidos para o que Imp tem a te dizer sobre Eva Canning, você precisa descortinar essa mulher e você precisa ajudar Imp a não se silenciar.
Você precisa ficar submerso.
"Não vejo muita resolução no mundo; nascemos, vivemos e morremos, e no fim disso há somente uma confusão feia de negócios inacabados."
É preciso parar aqui, sair e respirar. Rafael datilografou.
A Menina Submersa é um dos meus livros favoritos. A leitura era totalmente fora do que eu estava costumado a ler e me rendeu uma experiência de leitura única. Mesmo com a narrativa densa, consegui pegar o jeito e tive uma leitura fluída. O final me deixou completamente estupefato. Apesar da nossa narradora ser contrária ao egoísmo de muitos artistas que eternizam seus medos em suas obras, na espera de que seus fantasmas se tornem os fantasmas de outras pessoas, ela sem querer o faz com muita maestria. Afinal, todos temos um canto da sereia em nossas cabeças. Imp é um marco literário na ficção-psicológica.
O livro é altamente indicado por autores consagrados e foi publicado em 2014 pela Caveirinha que vem revolucionando o mercado editorial de forma ousada e destemida, fato, boa parte do crédito da fama que o livro conquistou foi graças ao boca a boca dos fãs que usaram suas vozes para tratar de esquizofrenia, transsexualidade, feminismo e realismo fantástico como realmente devem ser tratados.
A Limited Edition da Editora Darkside, publicada no ano de 2015, é uma das edições mais lindas da editora. Ao longo das páginas, é possível achar algumas libélulas, besouros e outros insetos que rastejam pela sua leitura; o livro foi bem diagramado e a fonte escolhida ajuda a leitura fluir bem mais fácil; As bordas das páginas são coloridas de um tom rosa, o livro possui uma fita de cetim rosa e um belo marcador de páginas incluso.
Apesar de A Menina Submersa ser uma visita à literatura sombria, Caitlín não se considera uma autora de horror, mas sim uma escritora de ficção-psicológica dando voz também para a contemporânea ficção-estranha.
Para a alegria dos fãs dessa obra, ela será adaptada para o cinema! As últimas notícias sobre a adaptação é que estão escalando uma atriz transgênero para interpretar a Abalyn. Não sei como seria uma adaptação para o cinema de algo tão intangível como a mente de Imp, mas certamente vou adorar reviver essa experiência nas telas do cinema.
site: http://www.pelatocadocoelho.com.br/resenha/resenha-a-menina-submersa-de-caitlin-r-kiernan/