Tiago 03/08/2020
Manoel é um professor de "agramática".
Gosto de imaginar a vida como que dividida em fases, como capítulos de livros, onde o início e o fim de cada um não é bem demarcado e a transição é a constância. Sabe-se a passagem de um capítulo só "no depois", um tempo muito específico, que só se sabe olhando para trás. Um detalhe que gosto de reparar é nos livros que me acompanharam em cada um desses capítulos da vida: a companhia de alguns foi mesmo como um momento de entrega a descobertas outras durante a travessia do que eu estava vivendo.
Agora sabemos que não estamos enfrentando o melhor dos capítulos da história do Brasil. Além de "Brasil: Uma Biografia", que ando lendo, há este outro tesouro aqui, que tem me mostrado poemas como se eu estivesse descobrindo orações.
Ler poesia é um exercício de encantamento. Os olhos, emprestados aos versos do poema, se voltam para um lugar não mais concreto, mas abstrato: a nova realidade construída pelas palavras do poeta. Manoel nos dá licença, ao lê-lo, para nos sujarmos com o des-sentido das palavras. Importa a ele a palavra equivocada de seu sentido - é ela que faz poesia. E a partir de então podemos enxergar um pouco o mundo sob sua ótica: olhar para o chão, achar nele um vasto material poético, onde o mais inútil é o mais válido para a poesia. Nos ensina sobre as árvores, nos faz imaginar porque uma laranjeira dá laranja, por exemplo, quando um abacateiro dá abacates, e nos faz deduzirmos que é porque a laranjeira prefere os brincos amarelos e os abacateiros é mais afeito às crostas das castas do abacate.
Interessa ao poeta a "palavra suja". O termo aqui faz oposição à palavra que se pretende organizada nos demais discursos que não o discurso poético, onde há um rebuliço na semântica.
A julgar pelo poema "O Cisco", diria que Manoel teve algum contato com o pensamento de Jacques Lacan, do qual ele faz uma referência direta no poema citado, exatamente nos versos: "O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala a restos. / Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação dos poetas. / Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de contemplação dos restos". Lacan faz nas suas formulações teóricas sobre linguística e psicanálise a virada que Manoel pratica nos seus poemas. É no buraco da comunicação entre o Eu e o Outro que mora o equívoco do qual o analista faz uso para a interpretação, sabendo antes que, enquanto sujeitos de fala, nossa divisão subjetiva se esconde ali, no buraco do equívoco da linguagem. E é com uma beleza imensa que Manoel vai fazer referência ao verbo delirado - questão da qual também Lacan se debruçou nos anos que seguiram seu seminário sobre as psicoses. Cria Manoel:
"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio."
Manoel, como todo grande poeta, nos ensina a olhar.
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