Fabio Shiva 08/10/2020
"tradutor, traidor"
Foi no meio da leitura dessa obra, que aliás Espinosa desencarnou antes de concluir, que sete anos atrás coloquei o livro de lado, exausto e derrotado. Nessa segunda tentativa de ler até o fim o volume dedicado a Espinosa na coleção Os Pensadores, tive uma experiência interessante, que valeu um bom aprendizado. Lá pelas tantas, comecei a me sentir muito cansado com a leitura, quando notei que eu estava exatamente a uma página do ponto onde antes havia abandonado. Isso me fez ficar atento e perceber exatamente o que estava me cansando tanto: as inúmeras notas inseridas pelo tradutor, muito meticulosas e (para mim) absolutamente irrelevantes!
Olha que coisa: o tradutor (não acho necessário mencionar seu nome, pois não se trata de criticar sua tradução, mas de refletir sobre as armadilhas e meandros da vida acadêmica) é certamente um grande e douto especialista em Espinosa. Tanto que a cada parágrafo de sua tradução julga necessário incluir notas comparando (geralmente apontando erros) com outras traduções, além de fazer referências sobre o que Aristóteles, Fulano ou Sicrano achavam sobre aquele determinado ponto da filosofia de Espinosa.
Ora, considerando que o tema abordado no livro já é complexo o suficiente, e que o próprio autor achou necessário pontuar o seu texto com diversas notas e comentários, essas notas adicionais do tradutor, ao meu ver, acrescentaram um desnecessário calvário ao que poderia ter sido uma leitura bem mais fácil e agradável. Penso que aqui vi em ação uma variante da chamada “Maldição do Conhecimento”, descrita pelos irmãos Chip e Dan Heath em seu livro “Ideias Que Colam” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2020/05/ideias-que-colam-chip-heath-e-dan-heath.html). Parece que o tradutor sabe tanto sobre Espinosa que não consegue se conter e tem que colocar notas e mais notas a cada parágrafo. Talvez essas notas sejam úteis para alguém que vai fazer uma tese de doutorado sobre essa obra específica de Espinosa (e mais especificamente sobre as nuances de tradução tão caras ao tradutor). Para alguém como eu, interessado em conhecer “a verdadeira verdade” com a ajuda dos grandes filósofos, contudo, essa meticulosidade quase que escolástica mais atrapalha que ajuda.
Felizmente, a dificuldade foi identificada e deixou de ser um problema! Removidos os obstáculos, resta a filosofia luminosa desse grande pensador que, cada vez mais me convenço, deve ter sido um iogue em outra encarnação, e veio para a Europa no século XVII para ajudar a humanidade a recuperar a sabedoria dos antigos. Sinto que há uma profunda afinidade entre a filosofia de Espinosa e a filosofia védica, especialmente na sua concepção de Deus e da Natureza, que na filosofia Sankhya são conceituados como Purusha (Deus ou Espírito) e Prakriti (Natureza).
Que linda e excitante aventura, a do ser humano em busca de entendimento! Começando por essa frase de abertura, que coloco entre as mais belas que já li:
“Desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e suprema.”
Destaco ainda essas duas outras passagens, em meio a tantas outras igualmente belas:
“(...) a aquisição de dinheiro ou a concupiscência e a glória só prejudicam enquanto são procuradas por si e não como meio para outras coisas.”
“Mas o amor de uma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, sem qualquer tristeza.”
E viva Espinosa!
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2020/10/tratado-da-correcao-do-intelecto-baruch.html
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