Lucas 24/03/2022
A coragem de ousar: Os riscos que um (a) autor (a) corre ao sair de sua zona de conforto
De forma universal, não é raro que se encontrem autores (as) marcados (as) por um determinado estilo, mas que se aventuram por outros segmentos literários. Isso é muito comum no jornalismo especialmente, onde um cronista, por exemplo, vira um contador de histórias nato e parte para ficções mais elaboradas ou biografias mais robustas, talvez para alimentar seu insaciável viés investigativo oriundo da sua profissão.
A chilena Isabel Allende (1942-), uma das grandes escritoras do nosso tempo, simboliza essa amplitude literária. Ao se ler o inesquecível A Casa dos Espíritos (1982), seu primeiro livro e sua obra mais significativa, o leitor tem diante de si um pouco dessa mistura de estilos: sobre um cerne ficcional, Allende conta a história de várias gerações de duas famílias, misturando fantasia, espiritismo, lendas, realismo mágico e traços muito fortes do seu país natal, tudo isso entrelaçado por mulheres fortes, verdadeiras fortalezas femininas. Essa mistura se faz mais ou menos presente em várias obras da autora, tais como Longa Pétala do Mar (2019), O Caderno de Maya (2011), Paula (de 1995, dedicado à sua filha de mesmo nome, morta aos trinta anos), Eva Luna (1987), o atual Violeta (lançado no Brasil neste início de 2022), dentre outras obras significativas.
O Jogo de Ripper (2014) corresponde, dentro do numeroso rol de obras de Allende, à uma guinada radical dentro desse seu estilo histórico/fantasioso que tão bem a define. Desse modo, antes de quaisquer críticas (inevitáveis) ao livro, é importante que se reconheça que uma escritora com tantos sucessos e tão conhecida na América Latina necessita de uma enorme dose de coragem para se aventurar dentro de um estilo tão diferente que é o romance estritamente policial.
O livro se passa entre o final de 2011 e o primeiro quadrimestre de 2012 na Califórnia, mais especificamente em São Francisco. A protagonista é Amanda Martín, uma menina reservada e inteligente de 17 anos. Seu papel de protagonismo se deve ao tal "jogo" do título. O Jogo de Ripper é organizado pela "mestra", Amanda, que participa das reuniões virtuais que correspondem ao jogo. Os participantes são, além dela, um garoto paraplégico da Nova Zelândia, um rapaz isolado de Nova Jersey (na costa leste dos EUA), uma menina com desequilíbrio alimentar do Canadá e um jovem afrodescendente morador de Reno, cidade norte-americana do estado de Nevada. Além destes, Blake Jackson, avô e melhor amigo de Amanda, também participa do jogo. Todos os participantes usam personagens virtuais com as quais interagem com os outros, tentando decifrar crimes antigos (como os do inglês Jack, o Estripador, cuja identidade nunca foi descoberta e que cometeu uma série de assassinatos brutais em Londres no final do século XIX. Deriva dele, inclusive, a influência no título do livro: Ripper significa estripador em inglês).
Além de Amanda e seu avô Blake, a narrativa, a rigor, gira em torno de mais dois personagens essenciais: Bob Martín, inspetor-chefe de polícia de São Francisco e a qual, por coincidência (!) é pai de Amanda e Indiana Jackson, uma espécie de "massagista/terapeuta" e que é mãe da protagonista. O fato de Bob e Indiana serem divorciados é um aspecto que contribui para que a narrativa amplie seus horizontes, já que ela, uma mulher linda e sensível, atrai a atenção de muitos pretendentes (alguns deles posteriormente suspeitos).
A tal suspeição que se cria diante destes pretendentes (não somente eles, mas também clientes de Indiana e uma miríade de outros personagens secundários de relações familiares com os protagonistas) deriva de uma série de assassinatos brutais que ocorrem em São Francisco no período compreendido pela narrativa do livro. Em função da proximidade (não apenas geográfica) destes crimes com Amanda, o jogo adquire ares de uma importância mais fundamental do que simples distração.
Isso é tudo para que o contexto da obra seja delimitado eficazmente, já que um dos grandes artefatos de entretenimento de um romance policial é o mistério. E O Jogo de Ripper traz uma gama de suspeitos e possíveis respostas à pergunta "Quem matou?", que vem estampada em qualquer livro desse tipo de literatura. Desse modo, é o momento e a ocasião de refletir-se um pouco sobre a montagem desse mistério e a narrativa em si, em detrimento de comentar mais explicitamente o enredo narrativo.
Nesse aspecto, torna-se dominante a conclusão (também mencionada na maioria das resenhas) de que O Jogo de Ripper trata-se de um livro com alguns problemas. O principal deles, no meu entender, relaciona-se com a forma com que a narrativa é estruturada. Allende investe centenas de páginas em descrever vários personagens e seus antepassados (uma marca do seu estilo tradicional, o apego às hereditariedades) as quais contribuem pouquíssimo ao desfecho, protagonizado por três personagens. É curioso pensar também que os três protagonistas citados não estão envolvidos conjunta e diretamente na última cena do romance, tão fundamental num livro policial. Talvez a autora tenha usado essa infinidade de descrições como uma tática de distração, mas ela consegue mais cansar do que confundir a mente do leitor.
Este aspecto acaba emperrando um dos grandes motes de um romance policial: seu caráter cinematográfico. A forma (elogiável, apesar de alguns "furos" cronológicos) de conceber a narrativa numa "linha do tempo", com capítulos baseados em meses e subcapítulos baseados em dias, é o principal elemento condutor desse ritmo cinematográfico quando, em tese, o que deveria exprimir a ação caracterizadora desse tipo de livro são as escolhas e atitudes dos personagens.
Tal atitude gera outro reflexo: O Jogo de Ripper é um livro desbalanceado. Explica-se isso em função do caráter frenético nas últimas cem páginas, marcadas pela cinematografia ausente até ali e uma enormidade de informações úteis, cujas revelações poderiam ter sido antecipadas. Novos nomes, personalidades e até mesmo personagens surgem nesse final, a qual, apesar de conduzirem a um desfecho não tão tradicional, amenizam o impacto causado ao leitor. Muitos detalhes de alguns mistérios não são respondidos e a narrativa não abre espaço para que o leitor conjecture soluções possíveis a eles.
Entretanto (e felizmente, há um "entretanto"), Allende é bem feliz nos tópicos abordados que ajudam a contextualizar o enredo. Violência infantil (física e psicológica), dependência química, drogas, imigração, bullying, stress pós-trumático, religião e misticismo, entre outros, são elementos bem desenvolvidos pela autora. Mesmo que alguns destes formem aquele bloco de descrições que se revelam inúteis à linha narrativa principal, tratam-se de temas contemporâneos e que são desenvolvidos numa medida adequada.
Ao se dissecar O Jogo de Ripper, a impressão final é a de que trata-se de um livro com problemas, mas que por ser um romance que destoa totalmente da trajetória literária da sua autora, precisa ser encarado com uma menor dose de expectativa. É uma obra típica para equilibrar o leitor entre leituras mais profundas e filosóficas. Qualquer presunção acima disso pode trazer frustração a quem lê, sentimento este que não combina com as outras experiências que Isabel Allende tão bem proporciona.