Agatha Krauss
15/03/2019ExtraordinárioConheci o livro A Cabeça do Santo ao pesquisar os melhores livros de literatura brasileira contemporânea no Google para fazer um trabalho para a faculdade. No meio de tantos "resumos" incríveis, o de A Cabeça do Santo era curto e simples e, apesar das poucas palavras, uma em particular me convenceu a fazer a leitura: "fantástico".
A leitura é tão fluida e envolvente que li o livro em menos de um dia. E que livro! Li pouquíssimas obras nacionais e ao ler esta percebi quanta coisa estava perdendo por não dar a atenção merecida à nossa literatura.
A Cabeça do Santo foi escrito por Socorro Acioli, nascida em Fortaleza, graduada em Jornalismo, mestre em Literatura Brasileira e doutora em Estudos Literários. Este foi o seu primeiro romance para adultos, que nasceu a partir da oficina Como Contar um Conto, ministrada por Gabriel García Márquez.
O livro conta a história de Samuel, um jovem que, ao perder sua mãe, Mariinha, tem sua vida transformada. Antes do falecimento, Mariinha faz um pedido: que Samuel acenda três velas para os santos de quem era devota, padre Cícero, santo Antônio e são Francisco, e que vá até a cidade de Candeia procurar por sua avó e seu pai, que os abandonou antes de seu nascimento. Chegando ao vilarejo, Samuel se abriga em uma gruta, mas desperta às cinco da manhã ouvindo vozes de mulheres. Ao observar o lugar, percebe que não se trata de uma gruta, mas sim da cabeça de uma estátua, a estátua de santo Antônio, e as vozes femininas que escuta são as orações que as mulheres fazem ao santo.
Conforme fazia a leitura, uma surpresa: aquele livro não pertencia ao gênero fantástico, mas ao realismo maravilhoso, o que fazia muito mais sentido, considerando onde e como a história surgiu. Mas o que é isso?
O realismo maravilhoso é um tipo de narrativa que se situa a meio caminho entre os gêneros fantástico e maravilhoso. O fantástico seria o momento de hesitação, de incerteza se determinado acontecimento aparentemente sobrenatural pertence ou não a realidade. Já o maravilhoso ocorre quando o sobrenatural não causa nenhum estranhamento nem nas personagens nem no leitor, pois dentro daquele mundo inventado o sobrenatural é, na verdade, natural. O realismo maravilhoso propõe, portanto, uma coexistência do real e do sobrenatural em um mundo parecido com o que conhecemos. A partir da estratégia de integração entre ordinário e extraordinário, os acontecimentos são retratados como corriqueiros ao leitor, e este, influenciado pela familiaridade do narrador com o que é descrito e pela ausência de estranhamento tanto dos personagens quanto do próprio narrador, aceita os acontecimentos como algo natural. O inexistente confronto entre real e sobrenatural afasta o realismo maravilhoso da literatura fantástica, que é caracterizada por este embate. A ambientação da história em um mundo cotidiano, realista nos mínimos detalhes, inserindo o que consideraríamos irreal nesta realidade, afasta o realismo maravilhoso da literatura maravilhosa.
Socorro Acioli utiliza municípios reais em sua obra, como Juazeiro do Norte e Canindé, descrevendo-os de modo fiel. As estátuas de padre Cícero e são Francisco, por exemplo, que Mariinha pede para Samuel visitar e acender as velas, realmente se encontram nas cidades citadas. Mas o que realmente me surpreendeu foi a estátua do santo Antônio sem cabeça que, apesar de não ficar em um lugar chamado Candeia, existe mesmo e se encontra em uma cidade chamada Caridade, também no Ceará. O motivo para a estátua estar sem cabeça, assim como no livro, é por uma falha no projeto de construção, que não previu que o tamanho e o peso da cabeça tornariam impossível transportá-la até o corpo da estátua, que não tinha a estrutura necessária para suportá-la. O erro dos responsáveis pela construção da estátua fez com que nascesse a superstição de que os divórcios ocorridos na cidade são por culpa do santo Antônio sem cabeça. Socorro Acioli também criou em seu livro uma superstição em torno do monumento degolado, fazendo o povo de Candeia ter raiva do santo.
A cidade de Candeia é descrita por Samuel como um local fantasmagórico, sem sinais de vida, um lugar morto. Na cidade de Baturité, no Ceará, existe um povoado chamado Candeia de Baixo, sobre o qual não encontrei muitas informações, apenas que este povoado fica, de fato, perto de Canindé, então é provável que a autora tenha se inspirado nele para criar a sua Candeia. A falta de informações a respeito do povoado real sustenta o imaginário criado por Acioli em seu livro.
Contudo, apesar da aura misteriosa em torno deste local, Candeia enfrenta problemas muito comuns, como a superstição do povo e o descaso do prefeito, que levaram à morte a comunidade.
A religiosidade é um dos principais elementos da obra, que desde o início nos prepara para o já esperado sobrenatural. Entretanto, ao mesmo tempo em que temos personagens como Mariinha, que acredita nos santos e prevê sua própria morte, como todas as mulheres de sua família, também temos Samuel, que não tem fé, não acredita no dom de sua mãe e acha que os santos são apenas uma invenção dos desesperados.
Apesar do estranhamento de Samuel quando percebe que ouve vozes dentro da cabeça, ele aceita este acontecimento com certa naturalidade, assim como o narrador, o que faz com que nós, leitores, também aceitemos (eu mesma fiquei surpresa com a facilidade com que aceitei que ele ouvia vozes dentro da cabeça da estátua). Francisco, seu novo amigo, a princípio duvida de Samuel, tentando buscar uma explicação racional para o que ele relata, mas em seguida também aceita o poder inexplicável do rapaz e os dois encontram uma forma de se beneficiarem disso, tirando proveito da fé alheia (algo também comum em nossa realidade).
A crítica ao abuso de poder religioso e às pessoas que utilizam a fé para tirar vantagem dos outros está presente em todo o livro e fica nítida em passagens como "Sempre tive raiva de santo e agora tenho mais ainda. Eles só servem pra dar dinheiro a quem engana os bestas" e "Isso de ter fé é o que desgraça gente pobre como eu". É interessante perceber como o personagem tem raiva de santos por ter consciência de que as pessoas tiram proveito disso, mas ele mesmo se torna uma delas e ao final reconhece que enganou a gente da cidade.
A Cabeça do Santo termina sem explicar a natureza do poder de Samuel e, além disso, introduz mais elementos sobrenaturais ao final, como o seu pai, que morava no corpo da estátua e, quando estava lá dentro, conseguia ouvir o que Samuel falava dentro da cabeça, a sua avó, Niceia, que mesmo morta aparecia para o neto e conversava com ele, e Rosário, que relata sonhar desde criança com coisas que ainda vão acontecer. Esta ausência de explicação ratifica a obra como pertencente ao gênero realismo maravilhoso, pois os acontecimentos extraordinários de fato fazem parte desta realidade que, apesar de insólita, é muito familiar a nós.
Sem dúvida nenhuma recomendo muito a leitura de A Cabeça do Santo, principalmente aos que gostam de literatura brasileira contemporânea e de autores como Garcia Márquez, Juan Rulfo, Carpentier, Cortázar e Borges.