Ricardo Silas 19/05/2015
Der Shitstorm! (Tempestade de Merda)
Em meados do ano de 2013, o mundo cravou seus olhos no episódio mais constrangedor, hipócrita e, sobretudo, revelador, envolvendo o Reino Unido e os Estados Unidos. Edward Snowden, homem aparentemente simples, mas cuja coragem moral comove e convence qualquer suspeita de muitas pessoas, foi o portal de escapamento para a maior fuga de dados altamente secretos da história da humanidade. Não consegui pensar numa analogia melhor para enquadrar o governo norte-americano, além da distópica obra de George Orwell, “1984”, como sua principal equivalente, do que o pujante Tio Sam de calças arreadas, desengonçado e cheio de desespero ao suspendê-las às pressas de não ser visto. Simplesmente a NSA (National Security Agency) e sua cria igualmente hedionda, a GCHQ (Government Communications Headquarters), maiores organizações de inteligência secreta do planeta, foram desnudadas em público, ao violarem escandalosamente os regulamentos internacionais de privacidade civil e governamental. "Os Arquivos Snowden" oferece uma análise clara e detalhada de todos os fatores que trouxeram ao público o aglomerado de documentos e dados protegidos desde o governo Bush, até a administração Obama dos EUA. Parte dessa polêmica estarrecedora tem origem no atentado terrorista às Torres Gêmeas, presumivelmente praticado pela Al-Qaeda no notório 11 de Setembro de 2001. Após esses ataques, George W. Bush decidiu ampliar o aparato tecnológico e cibernético das redes de inteligência norte-americana, formada pela CIA e NSA. O discurso político do então presidente e seus apoiadores republicanos incutiu no povo as mais fabulosas ameaças de terror haviam sido impostas à segurança interna dos EUA. O que se seguiu depois do atentado foi um contra-ataque belicoso de soldados americanos enviados ao Oriente Médio, para restaurar o ego soberano do governo Bush que se encolhera quando os aviões esmigalharam os prédios mais famosos de Nova York. Depois do 11 de Setembro, a NSA se fortaleceu com um projeto confidencial de vigilância em massa, alcunhado de STELLAR WIND (Vento Estelar), desenvolvido por Bush a partir de 2001, que ganhou proporções inimagináveis. A pauta do projeto incluía a efetivação de varreduras e colhimento de metadados ilegalmente obtidos da população dos EUA, desde telefonemas, e-mails, conversas on-line e até informações pessoais, sem nenhuma prerrogativa justa que amparasse tais causas. O STERLLAR WIND se estendeu, sem restrições ou suspeitas concretas, a todos os que utilizavam serviços de telecomunicações prestados por grandes empresas nacionais. Snowden, ao se deparar com tamanho descalabro e evidente violação da Constituição dos EUA por parte do próprio governo, não conseguiu consentir ou ser mais um agente passivo da NSA. Após ingressar na NSA como um analista de sistemas terceirizado pela DELL, Snowden cuidadosamente reuniu os mais importantes documentos que serviriam como provas cabais contra os EUA e o Reino Unido, pelo crime de vigiar clandestinamente coletando todo tipo de registro de mais de 30 líderes mundiais, incluindo Dilma Roussef, bem como aliados como a chanceler Angela Merkel, até grandes empresas como Facebook, Google, Skype e, pasmem, a PETROBRAS. Quais interesses políticos e econômicos de Obama estão atrelados a essas medidas de espionagem? A narrativa do autor, Luke Harding, sem nenhuma incerteza consegue traduzir os momentos mais intensos da jornada de Snowden, desde a divulgação feita ao jornal The Guardian, até seu bem-sucedido asilo provisório na Rússia, sob as asas do Kremilin e de Vladimir Putin, inimigo atroz de Barack Obama. Isso suscitou debates inadiáveis, por exemplo: Snowden é um traidor ou um informante? Quais os limites do monitoramento do governo diante da liberdade de expressão e direito à privacidade? O fato de possuirmos poder logístico e político para realizar uma ação desnecessária deve superar a sensatez de limitarmos esse poder e dirigi-lo somente aos problemas realmente necessários? Com uma leitura deliciosamente atraente, este livro nos encoraja a refletir sobre outras nuances relacionadas ao ato de coragem de um homem que desafiou o poder político mais imponente e cínico do mundo e, de bônus, o sofisticado trabalho de Harding apresenta-se como um acesso direto às entranhas aleivosas desse mesmo poder indiscreto, indevidamente concentrados nos Estados Unidos da América.