Flávia Menezes 20/02/2024
O INFERNO DE MCCARTHY.
?Meridiano de Sangue? foi publicado em abril de 1985, e se tornou um marco da literatura norte-americana, especialmente após o professor e crítico literário Harold Bloom (que ocupou o cargo de ?Sterling Professor?, o mais alto grau acadêmico da Universidade de Yale) ter equiparado Cormac McCarthy à Melville e Faulkner, no que concerne à canônica tradição do romance americano.
Neste faroeste (western) visceral, que vai na contramão de tudo o que se conhecia até hoje sobre o gênero, através dos filmes hollywoodianos (agora Clint Eastwood mais se parece com um ?bangue-bangue da Disney?), temos aqui uma terra de ninguém, sem leis ou códigos de conduta, onde não há honra e muito menos heroísmo, nem há culpa ou remorsos, e a vida não vale nem ?um mirabel de limão?.
Quando a violência está presente na literatura, geralmente ela não é o centro ou o foco da história. Muito mais frequente é que o autor desenvolva uma ideia ou narrativa mais ampla a partir dela. Já em ?Meridiano de Sangue?, toda a necessidade de matar é tão somente uma necessidade que não precisa de motivações para acontecer.
Aqui, para um gatilho ser puxado não é preciso estímulo algum, e nem mesmo o autor dos disparos precisa compreender por que o faz. Assim como ter uma coleção de escalpos não tem relação alguma com ?status?, nem hierarquia, ou tenha por trás o intuito de ser reconhecido como o ?mais temido?, ou qualquer outra necessidade que a vaidade humana crie e recrie.
Não há como explicar o porquê de todo esse sangue derramado, até mesmo por não termos qualquer vislumbre de civilização nesta história, em nenhuma das aldeias por onde passam, deixando-nos sem condições mínimas para comparar antagonismos.
Harold Bloom, em uma entrevista para a ?Booknotes? (série de televisão americana da rede C-SPAN, que foi apresentada por Brian Lamb de 1989 a 2004), chegou a dizer que ?Meridiano de Sangue? é essa terrível parábola que esconde uma profunda preocupação com a sociedade americana proveniente do ?país das armas?, onde grandes atrocidades já aconteceram por conta do seu porte indevido, ou de tragédias vindas de doenças mentais de quem não tem qualquer estrutura para ser sequer senhor de si, quanto mais de uma arma.
Em "Meridiano de Sangue", McCarthy centra toda a sua narrativa neste cenário apocalíptico (ou seria mesmo o inferno?), de paisagem desértica onde essa jornada sem fim tem seu início, repleta de formas demoníacas e seres vivos e mortos que vão surgindo pelo caminho. São parágrafos e mais parágrafos dedicados a descrever o cenário do Ocidente (algo que McCarthy aprendeu com Faulkner), revelando cada detalhe das aldeias por onde o grupo passa, cada pessoa que ali viveu e morreu, cada animal, e cada detalhe mínimo das igrejas e desenhos esculpidos em pedra.
Em alguns momentos, eu chegava a sentir como se estivesse lendo um relato de achados arqueológicos, cuja real geologia sabemos bem que não era feita da pedra, mas do medo que cobria estas terras de um mundo paralelo ao nosso, repleto por simbolismos que representam tudo aquilo que mais tememos tanto externa, quanto interiormente.
Mas apesar de tantas descrições minuciosas, em momento algum temos acesso aos pensamentos ou sentimentos dos seus personagens. De fato, é essa atmosfera mutável de fundações rochosas e violentas dos Estados Unidos que vai dando forma aos personagens. Penso o mesmo referente a toda a essa violência inexplicável.
Cenário e violência não são elementos externos aos personagens, mas sim simbióticos, e reforçam continuamente tudo aquilo que lutamos para não reconhecer, e que tanto negamos o tempo todo: esse niilismo e depravação tão presentes na humanidade.
Apesar dos traços realistas, uma vez que McCarthy se baseou em amplo material de pesquisa para escrevê-lo, esta é uma obra que transcende a ficção histórica, e que se aproxima mais de um ?bildungsroman", ou seja, um romance de formação ?às avessas?, uma quase desconstrução, já que, ao invés de acompanharmos a passagem da juventude à maturidade do protagonista, observando todo o seu desenvolvimento físico e psicológico, aqui, o que vemos mesmo é tão somente um desenvolvimento físico que se encontra com esse vazio existencial profundo e inevitável do qual ele nem sequer se dá conta. Ao contrário! Somos nós, leitores, que o sentimos e sofremos no lugar dele.
Logo nas primeiras páginas somos apresentados ao Kid, um garoto de 15 anos sem nome e sem família, entregue à própria sorte, que para sobreviver precisa ser tão (ou ainda mais) violento que seus inimigos.
Estamos em 1849-1850, e as autoridades americanas e mexicanas recrutam forças paramilitares que são enviadas para escalpelar a maior quantidade de índios que residem no sudoeste dos Estados Unidos e no México.
Liderando o grupo temos o mercenário Glanton, um assassino frio que saqueia todas as aldeias por onde passa, acompanhado de uma das figuras mais enigmáticas de toda a obra de McCarthy, o albino e calvo Juiz Holden, o símbolo do Mal Absoluto, um pedófilo e violador que dança e toca rabeca, e que nunca dorme e nunca vai morrer.
Enquanto Harold Bloom proclama o juiz a ?Moby Dick? da vida do Kid, o Juiz Holden declara mesmo ser o próprio diabo, pregando o fato de que na vida não existe certo e errado, mas apenas vencedores e perdedores, e tudo o que existe na criação sem o seu conhecimento, existe sem o seu consentimento.
David Vann, um escritor que nasceu no Alasca, e é professor de escrita criativa da Universidade de Warwick, na Inglaterra, comparou o Juiz Holden à Grendel, o lado negro do homem, filho de Caim, e o Kid com Abel na forma de Beowulf, inclusive se questionando se a luta final do menino com o juiz seria a luta entre Grendel e Beowulf, ou o homem lutando diretamente com o próprio Deus, ou com o seu destino, ou com o seu próprio ser.
Mas de fato, como nos ensina David Vann, nem o juiz nem o garoto descendem de Abel, e a batalha entre eles é a de um Grendel e de Beowulf sem a parte da redenção. Afinal, Kid não é nenhum inocente, e toda essa ausência de moralidade dos personagens, e essa violência extrema que permeia todas as raças que compõem essa história (índios, americanos e mexicanos) acaba por torná-los todos semelhantes.
Aqui todos são igualmente desprezados e descartados, e aqueles que morrem, nunca mais são mencionados, sem dor e nem luto, exterminando toda plenitude da vida.
Além de todos os personagens emblemáticos, e das entidades paisagem e violência, existe um outro ponto de grande fascínio nesse romance, que é o próprio narrador.
Como habilmente analisa Maicon Tenfen, escritor brasileiro que é professor de literatura e de escrita criativa, ?culto e apocalíptico, o narrador criado por McCarthy permanece acima dos acontecimentos, não julga, não interfere, não sofre nem se espanta com a redundância das chacinas?, características essas que o tornam tão indecifrável quanto o são todos os outros personagens deste western.
Indecifrável é mesmo uma boa palavra para utilizar quando falamos de "Meridiano de Sangue", e aproveito e faço aqui uma confissão: esse foi um dos livros mais complexos que eu já li em toda a minha vida. E a dificuldade, por conta dessa narrativa figurativa do McCarthy, foi tamanha, que eu não havia entendido o que aconteceu no final, e só me dei conta do ocorrido, quando comecei a pesquisar mais sobre o romance, buscando a visão de especialistas (como os aqui citados) para me amparar e clarear tudo o que a minha visão limitada não foi capaz de apreender.
Digo isso porque esse não é um romance simples de ser lido. De fato, eu até ouso dizer que não é um livro para se ler, mas sim para ser estudado!
Afinal, essa ambivalência contida nestas páginas é assombrosa, porque existe muita coisa aqui implícita. É o famoso "dito pelo não dito". E para se compreender muito mais a fundo, é preciso retomar essa leitura muitas outras vezes.
Se um homem como Harold Bloom leu este romance mais de 20 vezes (tendo inclusive dedicado um capítulo inteiro a ele, em seu livro ?Como e por que ler??), e David Vann já o leu no mínimo umas 3 vezes, quem sou eu na fila do pão para querer entender toda a sua magnitude logo de primeira?
Com essa leitura, sei que consegui atingir apenas a superfície desta obra. Mas não é assim quando estamos dando os primeiros passos em tudo o que fazemos de novo na vida? Primeiro assimilamos as informações, depois as acomodamos, e somente depois, é que vem a adaptação, quando tudo foi apreendido e compreendido. Ainda precisarei de muitas releituras, muitos materiais de apoio, e ler muitos dos livros que inspiraram McCarthy nesta obra, para poder chegar às águas mais profundas.
Quero aproveitar e deixar o meu muito obrigada aos meus amigos Fábio Nunes e Andrea Carvalho por cruzarem esse deserto comigo. E por compartilharem suas divagações, impressões, pesquisas e insights que tiveram durante a leitura, que tanto me ajudaram a clarear todo esse emaranhado de simbolismos e alegorias mergulhados neste macabro banho de sangue, de uma obra-prima que nos lança diretamente para um verdadeiro inferno dantesco... só que à lá Cormac McCarthy!