jota 21/03/2021MUITO BOM: semi-autobiográfico junta gêneros distintos e coisas aparentemente desconexas, resultando num livro original e motivadorLido entre 18 e 21/03/2021. Avaliação: 4,5/5,0
Ano passado li Pulso (Rocco, 2013), ótimo livro de histórias curtas de Julian Barnes e nona leitura que fiz dele. Agora finalizo um décimo volume: JB acabou se tornando um autor favorito, como Philip Roth, Thomas Mann, Machado de Assis e outros. Naquele livro havia um conto bastante melancólico, Linhas do Casamento, que narrava a volta de um viúvo à ilha onde passava temporadas com a mulher, um lugar que costumeiramente visitavam desde que se casaram. É difícil não associar a narrativa à própria perda de Barnes, cuja mulher, Pat, editora de livros, a quem Pulso foi dedicado, faleceu em 2008. Altos Voos e Quedas Livres (Rocco, 2014) também é semi-autobiográfico.
E como Pulso também é dedicado à mulher; toda sua terceira parte, A Perda da Profundidade, gira em torno da perda do chão, da queda livre, de tudo o mais que está associado ao luto, à perda de um ente querido, caso da morte da esposa Pat Kavanagh para Julian Barnes. A primeira e a segunda partes, respectivamente O Pecado da Altura e No Nível do Chão, tratam de personagens históricos conhecidos e suas ligações com o balonismo, com as alturas, os altos voos, não apenas em balões, também em projetos de vida, metas e pessoas a conquistar, enfim, a aventura de viver (e sonhar), as perdas e os ganhos nisso envolvidos, coisas por aí...
Eles são basicamente três, foram contemporâneos, viveram entre o final do século XIX e o início do XX, exceto um deles. Suas histórias, têm a ver com os pioneiros da conquista das alturas usando balões de ar quente e das primeiras tentativas de fotografias aéreas. Que foram tiradas pelo fotógrafo, caricaturista e jornalista francês Felix Nadar (1820-1910), aspirando, digamos assim, a ser o olho de Deus instalado com sua câmera num balão. Uma segunda história retoma um personagem da narrativa anterior, o coronel Fred Burnaby (1842-1885), oficial de inteligência do exército britânico, boêmio, aventureiro e viajante, morto em Cartum, no Sudão. Nessa segunda história também é narrada sua paixão pela lendária atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) e como tudo terminou para ambos.
Tratando da perda da esposa e o luto do autor, o terceiro episódio é extremamente melancólico e por vezes triste, então a história do fotógrafo Nadar e as do coronel Burnaby e de Sarah Bernhardt podem dar a impressão de que elas são desconexas, o que não é verdade. Todas as narrativas têm a ver entre si, mesmo tratando de coisas aparentemente diferentes e prendem suficientemente nossa atenção pelo interesse que Barnes consegue instalar no leitor aos poucos: ele vai contando tudo em parágrafos curtos e belas passagens como a abaixo, após mencionar que as fotos aerostáticas de Nadar foram tiradas cerca de um século antes da viagem da Apollo 8 à Lua, em dezembro de 1968. Parece um parágrafo um tanto longo, mas é porque tomei a liberdade de juntar dois deles num só. Barnes escreve:
“Na véspera de Natal, a espaçonave passou por trás da face mais distante da Lua e entrou na órbita lunar. Quando ela apareceu, os astronautas foram os primeiros seres humanos a ver um fenômeno para o qual uma nova expressão precisou ser inventada: “o Nascer da Terra.” O piloto do módulo lunar, William Anders, usando uma câmera Hasselblad especialmente adaptada, fotografou uma Terra dois terços cheia flutuando no céu noturno. As fotos mostram a Terra num colorido sedutor, com uma cobertura esvoaçante de nuvens, sistemas espiralados de tempestades, mares azuis e continentes cor de ferrugem. O major general Anders mais tarde refletiu: ‘Acho que foi o Nascer da Terra que realmente comoveu todo mundo... Estávamos olhando para o nosso planeta, o lugar onde nós evoluímos. Nossa Terra era colorida, bela e delicada comparada à superfície dura, áspera, até mesmo tediosa da Lua. Acho que todo mundo se deu conta de que tinha viajado 240 mil milhas para ver a Lua, e a Terra era que valia mesmo a pena ser contemplada.’”
Tudo isso e outras coisas – entre elas o parágrafo que inicia a obra “Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes. E o mundo se transforma. As pessoas podem não reparar na hora, mas isso não importa. Mesmo assim, o mundo se transformou.” – fazem de Altos Voos e Quedas Livres um livro que apesar de curto, que se lê rapidamente porque é claro e suficientemente interessante ainda deslumbra o leitor, quebra barreiras entre os gêneros literários e traz meditação e beleza para quem o lê. E pensar que de início tudo parecia assim como se Barnes fosse falar bastante de balonismo e de algumas pessoas conhecidas, mortas há certo tempo... Ia parar por aí, mas não resisti a uma frase da resenha que Peter Conrad escreveu para The Guardian em 2013, quando o livro foi lançado na Inglaterra (título original: Levels of Life): “Este livro tem uma ambição monumental: é um Taj Mahal feito de papel em vez de mármore branco.” Exagerado, mas nem tanto assim...