Literatura Policial 26/10/2014
Maigret, o bloco esculpido em madeira de lei
Pietr, o letão é a estreia do comissário Maigret como protagonista de um romance. O detetive foi criado em 1931 por Georges Simenon, autor belga que mudou a história da literatura policial. É ele o responsável por popularizar uma abordagem narrativa profunda, porém com incrível apelo popular. Para tanto, Simenon focou suas histórias na análise da natureza do caso, priorizando a reflexão do indivíduo e os motivos que levam a cometer um crime. Maigret, seu detetive taciturno que trabalha na Polícia Judiciária de Paris, pondera sobre as razões dos casos que investiga, ás vezes apiedando-se das almas que encontra pelo caminho.
A ênfase à psicologia do crime era algo até então novo na arquitetura das histórias policiais. As tramas que mais agradavam o leitor abusavam do assassino misterioso a ser desmascarado, que podia tanto deixar uma pegada disforme de sapato no quintal do cadáver quanto entopir as artérias do milionário com um balde de estricnina no café da manhã. Essa era a literatura policial clássica e popular do início do século 20, representada pelos maravilhosos Sherlock Holmes e Hercule Poirot.
São 164 páginas de leitura. Maigret já desponta observando minúcias, grandalhão, volumoso, granítico, mantendo aquele ar lacônico primo da rispidez que a ele convém. Encaixa o chapéu-coco na cabeça, estuda o olhar do sujeito de longe, seu tom de voz monocórdio e o que ele, preferencialmente, não diz. Congela com a temperatura glacial da massa tumultuosa do oceano, observa as nuances blasé dos dias melancólicos de Paris e detalha a anatomia caricata dos suspeitos petulantes, de rostos excitados, gestos imprecisos e corpos elásticos.
Maigret, que quando se enerva tritura o cachimbo nos dentes, sua a camisa para sacar a real identidade do letão Pietr, um trambiqueiro que proporciona o grand finale a esse suspense sensacional. Pietr, com seu terno cor de canela e pele de marfim, faz o comissário correr pelas ruas de Paris em busca de respostas para o enigma que se apresenta no início, quando Maigret vê o próprio letão sem vida no banheiro de um trem. Dá pra sentir o cheiro do radiador de calefação do hotel Majestic entre os homens cartolados e os detetives afoitos da equipe do Quai.
As metáforas também pipocam, afoitas, melódicas, encravadas. Soam como poesia que colore as paisagens sem sal de Fécamp, ou a austeridade dos corredores do Quai des Orfèvres. Eis algo que Simenon fazia com excelência, tal qual Chandler. Ele criava metáforas e ambientava. Fantasiado de Maigret, persegue o suspeito com as pupilas cinzas, como se descamadas pela chuva, desviando do fluxo de carros que é tão constante como o do sangue nas artérias, com seus olhos cor de carvão e sua expressão lívida de cansaço, sentindo as dores do ferimento como agulhas compridas penetrando no peito.
'Pietr, o letão' fez mais do que apresentar Maigret. Inaugurou uma série de sucesso, marcou uma nova forma de narrar policiais e imortalizou o autor. Não é para qualquer um.
> Resenha publicada no site literaturapolicial.com
site: http://literaturapolicial.com/2014/07/27/maigret-o-bloco-esculpido-em-madeira-de-lei/