Henrique Fendrich 06/09/2019
Longa vida à feira de Julio Bernardo
Ah, esse eterno microcosmo que é a feira – curioso reflexo do mundo! Quem exclama assim é Julio Bernardo enquanto reconstrói, através de suas crônicas, as memórias do tempo em que foi feirante em São Paulo. “Dias de feira” (Companhia das Letras, 2014) apresenta um relato cru e surpreendente deste pequeno mundo, com suas histórias e personagens. Ali, dentro da feira, vive-se uma vida completa. “Ela é o lugar onde famílias vivem juntas, são desfeitas ou refeitas, ou tudo isso ao mesmo tempo”, explica Julio – e talvez por isso tenha sido tão difícil para ele sair desse mundo. Seu livro de crônicas é um sincero esforço para revivê-lo.
Embora reconheça que a feira não deixa de ser uma operação de guerra, o auge do capitalismo a céu aberto e no asfalto, Julio evidencia o coleguismo entre os feirantes. Ainda de madrugada, quando começam a chegar os fruteiros e os verdureiros, esses homens se dedicam a animadas jogatinas (muitas vezes acompanhadas de substâncias ilícitas), por vezes alimentados por uma “tiazinha do bolo” que some antes da feira começar. Aos poucos chegam os pasteleiros, os peixeiros e, por último, o bucheiro (feirante que vende miúdos), que era a profissão do pai de Julio.
São homens que praticam o processo de escambo entre si, de modo que conseguem ter comida de sobra, mesmo com pouca renda. Suas maiores despesas são com o bar, o “ponto de equilíbrio da feira” (e, segundo Julio, é pouco provável que alguém beba mais que bucheiro). Muitos são ex-presidiários e imigrantes, de italianos a nordestinos. Embora existam muitas histórias de roubos e malandragens dos feirantes, Julio garante que são exceções e afirma que em nenhum outro universo que circulou encontrou tanta dignidade. “E mesmo os larápios são mais honrosos que muito engravatado que circula todo pimpão por aí”, observa.
O cronista chega inclusive a revelar alguns dos truques que costumam ser praticados na feira – sempre lembrando que picaretas há em todas as áreas. Também separa os vendedores em categorias, fala sobre os melhores horários para comprar e lembra que nem sempre o freguês tem razão – “se o sujeito pede algum absurdo, não há como ajudá-lo”. E em cada crônica vai contando a história de personagens, alguns pouco imaginados, como as senhorinhas que, sem saber o que é vaidade e mal tendo o que comer, fazem a limpeza das barracas.
Curiosamente, muitas das histórias que apresenta terminam de forma trágica. Assim é o caso, por exemplo, do feirante que se matou após descobrir o relacionamento homossexual do filho, do fruteiro que teve um infarto ao descobrir um roubo do filho, além da chocante morte da florista Aline e o violento fim do fiscal Rubão. Os fiscais, aliás, aparecem como aqueles que exigem, a cada semana, o seu “cafezinho”, do contrário irão chamar a vigilância sanitária e o feirante receberá multas altíssimas.
No livro, a corrupção também é apresentada pelos próprios policiais militares, capazes de vender aos feirantes produtos que confiscaram na rua (inclusive drogas). E para as muitas situações envolvendo conflitos, ou mesmo crimes, entre os feirantes, Julio avisa: “O que acontece na feira morre na feira, sem interferência de polícia, nada” – como bem prova a história do Seu Paraná. “Na feira, em caso de roubo, é mais eficiente pedir ajuda para malandro que para a polícia”.
Do sopro de vida à jecalização
São histórias que Júlio conta em meio à sua própria trajetória, filho de bucheiro que cedo assumiu uma barraca e precisou conseguir o respeito dos outros feirantes. Da metade para o fim as crônicas ganham um cunho mais pessoal, com diversos episódios familiares marcantes, especialmente a precoce morte do seu pai, que fez com que Julio perdesse o interesse pela feira e tudo relacionado a ela: “Aquele mundo não fazia mais sentido sem meu grande herói”.
Desde então, Julio faliu no ramo do bucho, embora (para a sua própria sorte) tenha honrado as dívidas, alternou alguns bicos, trabalhou como cozinheiro, mas reconhece que nunca fez grande coisa depois da feira: “O sopro de vida que me valeu alguma coisa passei nesses dias de feira”. Não há um dia sequer que ele não pense nos personagens da feira. Acredita ser um zumbi, tentando reviver um auge que provavelmente nem ocorreu: “Para alguns, a morte chega ainda em vida e não há muito o que fazer”.
Essa visão desolada coincide com o olhar que o cronista lança ao redor e constata o atual “processo de jecalização” de que nos tornamos vítimas, quando a própria comida harmoniza com a nossa pobreza de espírito. A família diminuiu e exige porções individuais que são inviáveis para os feirantes, a população não sai mais de casa sem carro e falta estacionamentos próximos às feiras, os comércios terminam porque os filhos não levam o negócio adiante com o mesmo carinho e os que nascem já estão adequados aos novos-ricos. A própria feira mudou bastante (um melancólico Julio encontrou fruteiros roncando em uma madrugada que, tempos atrás, seria de jogatina). Até cartão de crédito as barracas já aceitam.
Mas mesmo com todas as mudanças e a tristeza que elas provocaram em si, Julio ainda encontrou ânimo para terminar o livro com uma exaltação: “Longa vida à feira!”. Porque, afinal, vida e feira são coisas indissociáveis para Julio – é o que deixa transparecer o seu honesto e admirável registro.
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