Arsenio Meira 10/08/2013
Banville Genial
Ordem inversa.
Primeiro foi o romance "O MAR", e a dor revolvida de Max Morden, personagem nuclear do romance, em sua tentativa de exorcizar a perda e suas consequências nada cordiais, mediante o enfrentamento: viajando com a filha até a casa em que viveu os anos dourados de sua vida, para buscar, nos desvãos da memória, os desvios do passado e uma possibilidade de futuro.
Depois, mais recente, li o romance LUZ ANTIGA, igualmente digno de toda as notas. Banville dá a impressão de que fará o leitor bocejar, e quando este menos espera, sem necessidade de tiroteios, sequestros, reviravoltas, eis que brota de sua prosa imagens atreladas à poesia, de que só os grandes escritores parecem captar.
Em LUZ ANTIGA, Banville escreveu um labirinto, e indicou - com carradas de poesia - o perigo inerente a tais desafios, seus atributos traiçoeiros ou manipuláveis.
O velho ator Alexander Cleave, protagonista do LUZ ANTIGA, já decadente, tem que arrumar uma maneira de lidar com o suicídio de sua filha única; enquanto isso, suas recordações se voltam para o passado, especificamente no espinho da sua iniciação sexual, aos 15 anos, com a mãe de seu melhor amigo, a senhora Gray, de 35.
E neste sinuoso caminho, Banville demonstra o quão perigoso é lidar com a dor maquiando-a com autopiedade. Isto fica claro quando o tempo volta ao aqui e agora: um Cleave já provecto alia-se amorosamente a uma mulher mais nova, igualmente desesperada e inflamada pelas mesmo dores do seu amante.
Ambos, carentes de uma catarse, selam um pacto para sobreviver.
O próprio Banville afirma que : “Não sou um inventor de tramas incríveis. Minha prosa é poética. Por isso ela soa experimental e complexa a muitos leitores.”
Bem, quando o leitor consegue tatear essa (aparente) complexidade, recompensa melhor não há.
E agora, neste O LIVRO DAS PROVAS, em que Banville pode associar o leitor a um dos maiores gênios da humanidade: Fiodor Dostoievski.
Em O LIVRO DAS PROVAS, o protagonista do romance escreve uma confissão em que fatos e ficção se entrelaçam. E essa conjunção desconstrói, ao que parece é deflagrada, com o intuito de mutilar sua própria identidade.
Em "CRIME E CASTIGO", sintetizando, o castigo intentado pelo interrogador de Raskolnikov é o de fazê-lo dobrar-se; alcançar a admissão espontânea do ato desumano, para vê-lo sair do episódio como um homem melhor, sem as teorias alucinadas que justificaram o ato de matar (“Se não há Deus, tudo é permitido”.)
Tudo isso ocorre em diversos diálogos de fantástica qualidade e ironia (tanto em CRIME E CASTIGO ,quanto em O LIVRO DAS PROVAS.)
O protagonista, Freddie Montgomery, surge como um ser monstruoso, capaz de matar com um martelo a mulher desconhecida que o flagrou roubando um quadro do século 17.
Mas Banville é o mestre do "prosa poética". Talvez, por isso, sua baixa audiência nestas plagas.
Ao narrar seu projeto de roubar o quadro, por exemplo, Freddie não revela nada: "Era como se fosse o projeto de uma outra pessoa que me tivesse sido dado para testar. Esse processo de distanciamento parece ter sido algo preliminar e essencial à ação".
Esse homem oco, que também se classifica como volátil, afirma que ultimamente se sente como se estivesse apenas assistindo a tudo:
"Eu já não mais me reconhecia. Nada tinha a ver com o homem que eu acreditava ter sido".
Embora ele mesmo declare que os pormenores o entediam, estes pululam no seu texto, do começo ao fim, grotescos, cômicos, às vezes cruéis.
No depoimento de Freddie despontam caricaturas. Talvez se pudesse também comparar "O Livro das Provas" a uma das primeiras novelas de Nabokov ("Convite para uma Decapitação", 1934), com seus cenários teatrais.
A estrada do andarilho Freddie é artificial, pode parecer-se às vezes, como ele mesmo reconhece, com uma ilustração de algum livro de geografia para crianças.
Há cenários estereotipados, paisagens saídas de cartões-postais, quando não dos romances sentimentais que se vendem em bancas de revista. Não surpreende que ele se sinta, logo após cometer seu crime, como um menino sonhando acordado num lugar de faz-de-conta (onde tudo começa a ruir).
As algemas da polícia vêm salvá-lo dessa "liberdade sem limites", desse estado de indeterminação.
Contudo, no seu depoimento, ele continua dando provas de que não há salvação para o seu caso: "Saber usar uma máscara parece-me ser a pedra de toque do refinamento humano".