Alê | @alexandrejjr 23/10/2020
A ficção na impureza
A leitura de Jorge Luis Borges é uma espécie de meditação sobre o ato de criar narrativas. Ambíguo, estranho, erudito. Borges é literatura na sua forma mais impecável.
Em “História universal da infâmia”, de 1935, somos apresentados a um Borges na meia idade, então com 36 anos. Diferentemente do que se possa pensar, ele não estava em crise e sim construindo sua poderosa obra em prosa curta. É fácil exemplificar o que digo a partir da última (famosa) frase presente no prólogo da primeira edição: “Ler, antes de tudo, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais civil, mais intelectual."
E é verdade. A palavra “universal” não está no título à toa. Nesta edição que li da Cia. das Letras estão presentes nove contos, sendo o último uma espécie de conjunto de microcontos. Juntos, os textos levam o leitor ao confronto, à confusão em histórias que misturam realidade e ficção e embaralham nossa percepção. Em resumo: somos jogados a um dos labirintos da cabeça de Borges.
As histórias se passam em quase todos os cantos do mundo: nos Estados Unidos, claro, com “O provedor de iniquidades Monk Eastman”, ou ao lado pistoleiro Billy the Kid em “O assassino desinteressado Bill Harrigan” ou, ainda, no Sul escravocrata antes da Guerra Civil em “O atroz redentor Lazurus Morell”, todas acontecendo entre o séculos XIX e XX; na América do Sul, no Chile, com “O impostor inverossímil Tom Castro”; na longínqua Ásia em três lugares, sendo “A viúva Ching, pirata” no mítico território chinês entre os séculos XVIII e XIX, “O incivil mestre de cerimônias Kotsuké no Suké” na terra dos samurais do Japão feudal e “O tintureiro mascarado Hákim de Merv” no mundo árabe do Turcomenistão com ares de “As mil e uma noites”. É a polifonia de vozes e ideias que envolvem o leitor em uma meticulosa teia sobre a autodestruição e perversão humanas.
Como Borges é demais para eu colocar neste singelo texto, contribuo aqui ao dizer que este foi meu primeiro contato com a prosa do mestre argentino. Houve uma desastrosa tentativa de ler “Ficções” que não vingou, mas que terá sua vez um dia. Jorge Luis Borges brincou como ninguém com a ideia do valor fabricado, do conceito de conhecer sem conhecer. É por isso que quero acabar este texto prolixo com uma frase que gostei muito e que pretensiosamente acho que resume bem a percepção de Borges sobre nossa condição e destaca o poder de concisão do mítico escritor: “A Terra que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam”.