Carla.Parreira 03/11/2023
O que o cérebro tem para contar
Desvendando os mistérios da natureza humana (V.S. Ramachandran)...
Melhores trechos: "...Por baixo de toda essa complexidade lírica há um plano básico de organização que é fácil de compreender. Os neurônios estão conectados em redes que podem processar informação. As muitas dúzias de estruturas cerebrais são em última análise redes de neurônios formadas para múltiplos propósitos, e têm muitas vezes uma elegante organização interna. Cada uma dessas estruturas desempenha alguma série de funções cognitivas ou fisiológicas discretas (embora nem sempre fáceis de decifrar). Cada estrutura cerebral estabelece conexões padronizadas com outras, formando assim circuitos. Os circuitos transmitem informação para cá e para lá em círculos repetidos e permitem às estruturas cerebrais trabalhar juntas para criar percepções, pensamentos e comportamentos sofisticados... Se o lobo pré-frontal esquerdo estiver lesado, o paciente pode se afastar do mundo social e mostrar acentuada relutância em fazer o que quer que seja. Isso é eufemisticamente chamado de pseudodepressão, ?pseudo? porque nenhum dos critérios usuais para a identificação da depressão, como sentimentos de desolação e padrões negativos de pensamento crônicos, é revelado por sondagem psicológica ou neurológica. Ao contrário, se o lobo pré-frontal direito estiver lesado, o paciente parecerá eufórico, ainda que, mais uma vez, de fato não esteja... Quando você se esquiva de um objeto atirado em sua direção, quando você se move por uma sala evitando tropeçar nas coisas, quando você pisa cautelosamente num galho de árvore ou sobre um buraco, ou quando estende a mão para pegar um objeto ou apara um golpe, você está dependendo de seu fluxo 'como'. Em sua maior parte, essas computações são inconscientes e extremamente automatizadas, como um robô ou um copiloto zumbi que segue nossas instruções sem necessidade de muita orientação ou monitoramento... A amígdala funciona em conjunção com lembranças armazenadas e outras estruturas no sistema límbico para avaliar a significação emocional de qualquer coisa que estejamos olhando. A amígdala humana está também conectada com os lobos frontais, que acrescentam sabores sutis a esse coquetel de emoções primárias, de modo que você não tenha apenas raiva, desejo e medo, mas também arrogância, orgulho, cautela, admiração, magnanimidade e coisas do gênero... Sempre que você vê alguém fazendo alguma coisa, os neurônios que seu cérebro usaria para fazer tal coisa ficam ativos, como se você mesmo a estivesse fazendo. Se você vê uma pessoa sendo espetada com uma agulha, seus neurônios da dor começam a enviar impulsos como se você estivesse sendo espetado. Isso é extremamente fascinante e suscita algumas questões interessantes: o que nos impede de imitar cegamente todas as ações que vemos? Ou de sentir literalmente a dor de outra pessoa? No caso de neurônios-espelho motores, uma resposta é que pode haver circuitos inibitórios frontais que suprimem a imitação automática quando ela é inapropriada. Num delicioso paradoxo, essa necessidade de inibir ações indesejadas ou impulsivas talvez seja uma razão importante para a evolução do livre-arbítrio... Desde o tempo de Kanner e Asperger, houve centenas de estudos de caso na literatura médica documentando, em detalhes, os vários sintomas aparentemente desconexos que caracterizam o autismo. Estes caem em dois grupos principais: sociocognitivos e sensóriomotores. No primeiro grupo, temos o sintoma isolado mais importante para o diagnóstico: tendência ao isolamento e falta de contato com o mundo, em particular o mundo social, bem como profunda incapacidade de entabular uma conversa normal. Junto a isso há uma ausência de empatia emocional por outras pessoas. No que é ainda mais surpreendente, crianças autistas não expressam nenhum espírito lúdico e não se envolvem no faz de conta irrestrito com que crianças comuns enchem as horas que passam acordadas. Nós, seres humanos, como já se salientou, somos os únicos animais que levamos nossa graça e disposição para fantasiar à vida adulta. Como deve ser triste para os pais ver seus filhos e filhas autistas impenetráveis ao encantamento da infância. No entanto, apesar desse isolamento social, as crianças autistas têm um interesse intensificado por seu ambiente inanimado, muitas vezes a ponto de serem obsessivas. Isso pode levar à emergência de preocupações estranhas, estreitas, e uma fascinação por coisas que parecem completamente triviais para a maioria de nós, como memorizar todos os números de telefone num catálogo. Voltemo-nos agora para o segundo grupo de sintomas: os sensório-motores. No lado sensorial, estímulos sensoriais específicos podem parecer extremamente angustiantes para crianças autistas. Certos sons, por exemplo, podem desencadear violentas explosões de cólera. Há também um medo da novidade e da mudança e uma insistência obsessiva na mesmice, na rotina e na monotonia. Os sintomas motores incluem um balanço do corpo para a frente e para trás, movimentos repetitivos com a mão, inclusive gestos de sacudi-la e dar tapas em si mesmo, e por vezes rituais elaborados, repetitivos. Esses sintomas sensório-motores não são tão definitivos ou tão devastadores quanto os socioemocionais, mas ocorrem com tanta frequência que devem estar conectados a eles de algum modo. Nossa visão do que causa o autismo estaria incompleta se deixássemos de considerá-los. Há mais um sintoma motor a mencionar, o qual encerra a chave para a decifração do mistério: muitas crianças autistas têm dificuldade em imitar as ações de outras pessoas. Essa simples observação sugeriu-me uma deficiência no sistema de neurônios-espelho... Consideramos até agora duas teorias candidatas a explicar os bizarros sintomas do autismo: a hipótese da disfunção dos neurônios-espelho e a ideia de uma paisagem de saliências distorcida. Sejam quais forem os mecanismos subjacentes, nossos resultados sugerem fortemente que crianças com autismo têm um sistema de neurônios-espelho disfuncional que pode ajudar a explicar muitas características da síndrome. Se essa disfunção é causada por genes relacionados ao desenvolvimento do cérebro ou por genes que predispõem a certos vírus (o que por sua vez pode predispor a crises convulsivas), ou se é devida a algo completamente diferente, ainda está por ser esclarecido. Por enquanto, isso pode fornecer um útil trampolim para pesquisas futuras a respeito do autismo... Na verdade, o autismo poderia ser encarado fundamentalmente como um distúrbio da autoconsciência, e, nesse caso, sua investigação pode nos ajudar a compreender a natureza da própria consciência... A pessoa interrompe tanto comportamentos manifestos quanto emoções e se vê com indiferença objetiva em relação à sua própria dor ou pânico. Isso ocorre por vezes em estupro, por exemplo, em que a mulher fica num estado paradoxal: 'Fiquei vendo a mim mesma sendo estuprada como se fosse um observador externo indiferente, sentindo a dor, mas não a angústia. E não havia nenhum pânico.' A mesma coisa deve ter ocorrido quando o explorador David Livingstone foi atacado por um leão que lhe arrancou o braço fora a dentadas; não sentiu dor nem medo. A razão de ativação entre esses circuitos e interações entre eles pode também dar origem a formas menos extremas de dissociação em que a ação não é inibida, mas as emoções são. Apelidamos isso de 'reflexo de James Bond': seus nervos de aço lhe permitem permanecer inafetado por emoções perturbadoras enquanto persegue e enfrenta o vilão. O self se define em relação a seu ambiente social. Quando esse ambiente se torna incompreensível, por exemplo, quando pessoas conhecidas parecem desconhecidas ou viceversa, o self pode experimentar extremo sofrimento ou mesmo sentir-se ameaçado... Essa 'adoção de uma visão objetiva' em relação a nós mesmos é também uma exigência essencial para descobrirmos e corrigirmos nossas próprias defesas freudianas, o que é parcialmente realizado através da psicanálise. As defesas são comumente inconscientes; o conceito de 'defesas conscientes' é um oximoro. O objetivo do terapeuta, portanto, é trazer as defesas para a superfície de nossa consciência de modo que possamos lidar com elas (assim como uma pessoa obesa precisa analisar a fonte de sua obesidade para tomar medidas corretivas). Perguntamos a nós mesmos se seria mais fácil encorajar uma pessoa a adotar uma posição conceitual alocêntrica (em linguagem simples: encorajar o paciente a adotar uma visão imparcial e realista de si mesmo e de suas loucuras) para a psicanálise encorajando-a a adotar uma posição alocêntrica perceptual (como fingir que é outra pessoa assistindo à sua própria conferência). Isso poderia, por sua vez, teoricamente, ser facilitado por anestesia por cetamina. Essa substância gera experiências extracorpóreas, fazendo a pessoa se ver a partir de fora...
Retornando à psicanálise: certamente remover defesas psicológicas suscita um dilema para o analista; é uma espada de dois gumes. Se defesas são normalmente uma resposta adaptativa do organismo (sobretudo da parte do hemisfério esquerdo) para evitar a desestabilização do comportamento, desnudá-las não seria um fator de inadaptação, perturbando o senso que uma pessoa tem de um self internamente coerente junto com sua paz interior? Para escapar desse dilema é preciso compreender que doença mental e neurose surgem de um mau uso de defesas, nenhum sistema biológico é perfeito. Em vez de restaurar a coerência esse mau uso levaria, na verdade, ao caos adicional..."