Higor 20/09/2020
'Lendo Pulitzer': sobre a necessidade de se conhecer os requisitos de prêmios literários antes de julgar suas escolhas
Verdade seja dita: nem todo livro premiado é bom, assim como nem todo livro bom é premiado. Um bom livro tem que se sustentar sozinho, sem marketing, indicações, premiações, listas e afins. Um bom livro é bom porque tem literatura, qualidade, atende as expectativas, pessoais e críticas – daí é outro terreno, com base em teorias -, além de passar uma mensagem e falar com seu leitor, apresentar um período específico ou envelhecer bem, abraçando uma geração inteira e se tornando, assim, um clássico. Um bom livro não deve ser reconhecido unicamente - mas também! - por alguma honraria. Em contrapartida, um livro premiado significa automaticamente que é bom para aquele nicho, para aqueles requisitos previamente informados.
Por que estou dizendo isso que todo mundo sabe? Porque é um tanto idiota e sem nexo falar coisas como 'Não sei por que ganhou o Pulitzer' em leituras que abocanharam alguns prêmios no ano de seu lançamento. Oras, ganhou porque, primeiramente, atendeu aos pré-requisitos do Pulitzer, e se mostrou o melhor livro dentro dos pré-requisitos estabelecidos, no mínimo. Tal láurea não catapulta automaticamente autor e livro como os melhores do mundo ou do ano, mas o melhor dentro daquele nicho específico naquele período. O Pulitzer não é a voz suprema da literatura, para começo de conversa. Pelo contrário: apesar de fama e respeito consolidados, é um dos prêmios mais fechados e sem variedades existentes, que restringe a imensa maioria do mundo literário. Você, aliás, sabe quais são os pré-requisitos do prêmio?
O Prêmio Pulitzer de Ficção elege o melhor livro do ano anterior que a) seja de um autor americano e b) fale, preferencialmente, da vida americana. Donna Tartt é americana? Sim! Seu “O Pintassilgo” fala sobre a vida americana? Totalmente! "O Pintassilgo" corresponde, sim, aos requisitos básicos, mas eu vou mais além e digo: “O Pintassilgo” é um livro para americano nenhum botar defeito. É um livro que fala dos EUA aos americanos de maneira apaixonada, que apresenta um Estados Unidos diferente do eixo turístico, sem deixar de lado, claro, o patriotismo, o famigerado american way of life.
Acompanhar a trágica vida de Theo Decker, um garotinho de 13 anos que perde a mãe em uma visita a um museu, onde o mesmo sofre um atentado terrorista, embora um tanto lento e até enfadonho, é uma verdadeira aula de geografia dos Estados Unidos, tudo pelo seguinte motivo: Decker viaja de Nova York para o Texas, dois estados totalmente distintos. 2900 quilômetros de distância, para ser específico na distinção. Trazendo a história para o Brasil, seria a mesma coisa que iniciar o livro em São Paulo e transferir toda a história para Belém, Pará. Isso com a devida maestria, sugando, apresentando e ambientando toda a cultura, costumes, trejeitos, sotaques e diferenças que os estados têm.
É claro que muito disso pode ter se perdido com a tradução, mas ainda assim se notam resquícios, por exemplo, quando um personagem texano, dito caipira nos EUA, fala o que em tradução ficou um 'diacho', o que o protagonista, um da metrópole, acha estranho. São ondulações e diferenças no original que na tradução, infelizmente, devem ter passado, embora eu não possa afirmar com categoria; exemplo conhecido e sempre comentado de história americana, com distinção do personagem dito caipira, da roça, com linguagem própria e nativa, mas que a essência se perde na tradução, por exemplo, é o do lendário "As aventuras de Huckleberry Finn". Um detalhe importante que não sabemos por não conhecer a cultura do país, engessados com as imagens típicas e turísticas de televisão, mas que, com certeza foram notados pelos jurados, abrilhantaram a história e fizeram com que o livro fosse laureado, enquanto nós, não americanos, que mal conhecemos a extensão territorial do Brasil, temos o pseudoconhecimento para julgar o mérito literário de um prêmio.
Tais explicações são para justificar o livro? Não, até porque, como dito acima, o livro tem que caminhar sozinho, sem explicações, sem texto de apoio, pois do contrário, ele não cumpre seu papel, sendo fadado ao fracasso, mas ainda assim, se faz necessário explicá-lo não como livro, mas como livro premiado. Para julgar o prêmio, é preciso, antes de tudo, entendê-lo, e não simplesmente o livro, para questionar sua escolha.
"O pintassilgo" está longe de ser um livro perfeito, pois existem trechos que não acrescentam a história, mas apenas dão uma enrolada que leitores menos pacientes certamente vão abandonar, além de, claro, ser um tanto glamourizado quanto a resolução de diversas situações que, sabemos, não são tão simples ou repletas de pessoas voluntariosas como as demonstradas – isso sem falar no insistente patriotismo de que, apesar dos problemas sociais, os Estados Unidos é o melhor lugar do mundo.
Apesar de tudo, "O Pintassilgo" é um livro muito eficiente sobre a geografia, cultura e diferenças de povos de um mesmo país, além de abordar, claro, a real e até então ignorada nos livros, vida de imigrantes nos Estados Unidos, o país que mais recebe no mundo, disparado, mais estrangeiros para se viver. A improvável história de uma pintura holandesa capturada por um americano de metrópole que precisa se mudar para uma área interiorana, onde faz amizade com um ucraniano que já viajou o mundo inteiro funciona muito bem, sem cair no xenofóbico ou no pedantismo.
O que faz "O Pintassilgo" perder muito, independente de prêmio, é justamente a abordagem do quadro O Pintassilgo, de Carel Fabritius. Apesar de ser o título do livro e de ser dito como trama central, o mesmo passa despercebido durante grande parte da leitura, o que me incomodou mais do que pensei, para ser sincero, principalmente na escolha para um plot twist específico escolhido para a história.
Tantos outros livros dão mais ênfase à pintura, ao artista e até mesmo ao processo de pintura ao invés de desviar a atenção para assuntos triviais, juvenis e que envolvem bebidas e drogas. Um ótimo livro, igualmente lento, igualmente sobre a arte, mas de maneira mais graciosa e eficiente no que diz respeito a uma tela, ao menos para mim, é "Os ladrões de cisne", da historiadora americana e não premiada (!) Elizabeth Kostova. Um livro que, em minha opinião, se colocar ao lado de "O Pintassilgo", sem renomes, prêmios e pompas, é muito melhor, mas que para os críticos não possui as camadas definidas, não tem uma ambientação tão crível e/ou personagens distintos entre si, enfim, pontos suficientes para ser agraciado com um prêmio. O grande prazer da leitura, a opinião de cada um acerca de um mesmo livro, não?
Apesar do interesse em um livro justamente por conta do prêmio, é um tanto imaturo julgar o livro premiado e a autenticidade do prêmio, sem conhecê-lo, quando deveria compreender que apesar de não ter sido uma boa leitura, foi compreensível a escolha para aquele prêmio. No final, o que importa não é o prêmio, apenas a experiência pessoal da leitura, do livro, de um bom livro que tem uma boa literatura e que fala não somente com um nicho específico, mas que conquista o maior número possível de leitores.
Questionável por uns e adorado por outros, "O Pintassilgo" traz à luz o óbvio: que um livro premiado está longe de significar que é bom, assim como que, antes de julgar a láurea de um prêmio, deve-se entendê-lo e conhecer seus requisitos para não julgar precipitadamente a escolha feita.
Este livro faz parte do projeto 'Lendo Pulizer'. Mais em:
site: leiturasedesafios.blogspot.com