3.0.3 30/01/2024
Onde o silêncio é mais assombroso que o estrondo
“Esse jovem e insignificante estrangeiro, Brigge, terá de se sentar no quinto andar e escrever, dia e noite: ele terá de escrever, é assim que isso acaba.”
Em Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), do escritor Rainer Maria Rilke (1875-1926), os pensamentos afiados do protagonista Brigge, aliados a andamentos musicais, estruturam um livro plural e complexo. A obra é uma construção burilada a partir de uma linguagem onde as palavras, como força de criação, realçam as potências da prosa e da poesia. Trabalhando a solidão na cidade de Paris, repensando aspectos de quando criança, refinando o silêncio e refletindo sobre familiares misteriosos, Rainer Maria Rilke incorpora à sua escrita traços de autobiografia. No princípio é um pouco confuso diferenciar os aspectos de uma escrita cheia de símbolos que oscila entre o sonho e a música, pois Brigge é um ser consciente que está constantemente em movimento e que nunca repousa, mesmo quando se silencia.
Os cadernos de Malte Laurids Brigge ergue pelo próprio sopro um mundo existente antes da linguagem que o chama. Nesse espaço, a atenção de Brigge se detém no mais incógnito dos mundos, e a narrativa busca desvendar o enigma do real, mas sempre impregnado pelo dúbio e pelo obscuro. Não se trata, portanto, de um mundo cadenciado e equilibrado, mas de um mundo criado em códigos, infinito em sua transitoriedade. O leitor – que se depara com uma obra tão densa e suave como um universo que já existe antes mesmo do olhar, mas que o solicita com atenção para ser revelado – se perde na obra como alguém que se perde num labirinto de mistérios, tomado pela curiosidade e pela tensão. De fato, ninguém explora com facilidade os horizontes de Rilke.
“Pois em sua solidão ele amou e amou; a cada vez ele amou com a dissipação de toda a sua natureza e com um medo indizível pela liberdade do outro.”
Se o que pulsa na obra é o cansaço sensível das palavras, que da sua potência imagética extingue todas as maneiras de senti-las, compreende-se que não há qualquer universo antes da obra, apenas ela durante o seu sopro. Ou seja, o que há e o que nunca deixa de haver acenam sempre o seu último fôlego. Há sensações demais. Enquanto a noite se ergue, tudo o que vive sob a luz vive de instabilidade, buscando nos tocar – e esse primeiro toque ainda acontece quando a consciência da obra atravessa a inconsciência do leitor.
Lá ou cá, Os cadernos de Malte Laurids Brigge evidencia o impacto da sua presença e a sutileza a cada linha. A obra segue um fluxo sem se assentar sobre um tema específico. Nessa cadência, aborda aspectos inerentes a Brigge, que discorre sobre a infância, a vida, o amor e a morte – tudo isso trabalhado sob o rigor da poesia e da filosofia, fato que confere ainda mais grandiosidade à obra. O ponto de confluência de todos os desdobramentos é a própria linguagem que, sempre revolucionária, insufla vida numa paisagem existente antes do homem e do corpo. E, nesse cenário de sensações articuladas pela linguagem, que não consegue mais modelar qualquer resquício de afeto, é a extrema solidão que conduz Brigge pelas ruas de Paris.
Em solo parisiense, Brigge é um principiante em suas próprias circunstâncias. Tudo para ele é complexo porque tudo transborda novidade. Ele vive uma vida cheia de novidades, num mundo que passou por grandes mudanças. Sendo influenciado por diversos aspectos, cria na alma uma ideia completamente distante de tudo. É preciso dizer que Brigge também é tomado pelas seduções que Paris suscita, e isso transforma a maneira como ele vê o mundo e a vida. Paris é uma cidade cheia de seduções. No aniquilamento das vozes que se acumulam em todos os cantos da cidade, todas as sensações que a obra sustenta são arquitetadas pelo abismo, sem qualquer proteção ou blindagem elucidativa prévia.
“Pois sabia que lá fora as coisas prosseguiam com a mesma indiferença de sempre, que também lá fora não havia nada a não ser minha solidão. A solidão à qual me resolvera e cujo tamanho não guardava mais qualquer proporção com o meu coração.”
Nota-se a cada sentença que Brigge é um Hamlet que luta com os fantasmas de outro tempo numa madrugada sem amanhecer. Abismo fora das fronteiras lógicas, a obra plasma um pensamento que procura o labirinto oculto de Dédalo. Ao fazer isso, revela a sua grande força, que é a de sustentar o instinto de morte que paira a cada frase. Revela-se, mas digo que nunca por completo, pois suas reflexões sempre se fragmentam – e cada reflexão é um encontro improvável, um vitral sinfônico. Serenos e graves, os sons se encontram e partem, percorrendo brandos e bravos as chagas mais íntimas, por cima dos abismos da idade e da fragilidade, transformando, dentro da noite, todos os cantos do espaço em algo suntuoso. Assim, a cidade, as ruas, as artes, o hospital, a morte, as folhas de papéis – em suas narrações prováveis – alinhavam, em última instância, os leitores para sobreviverem a si mesmos.
Obra sem enredo predefinido, Os cadernos de Malte Laurids Brigge busca compreender a vida em sua essência, conduzindo o leitor em uma jornada onde os desdobramentos são pensados e sentidos a partir de uma visão repleta de singularidade e subjetividade. Assim, a obra oferece uma reflexão profunda que combina poesia e ação. O resultado é uma narrativa que dissipa tudo, emana abstrações, fabulação de um sonho qualquer, sendo mãos que avançam no escuro sem deixar reflexos, reflexão que se desdobra, estranhando o porquê de desdobrar os seus estremecimentos.
Quando recitamos uma leitura, fazemos valer a sua maior potência, pois alocamos no espaço aquilo que antes morava nos olhos. O que nos resta depois é navegar à orla dos sentidos, testemunhando o que não pode ser testemunhado, nunca esquecendo que os destroços do naufrágio sempre fluem, refluem, girando, incessantemente. E assim é a escrita de todos, a arte de todos, porque, sendo de ninguém, nunca se apresenta, mas sempre revela as suas verdades ocultas, muitas vezes obscurecidas mesmo quando vistas de diferentes perspectivas. Mas, se ainda insistimos na leitura, é porque a obra acena para algo além de nós: arte. Os cadernos de Malte Laurids Brigge solicita atenção, pois é o destino imobilizante que fragmenta, que gera grande cansaço, deixando fugir os cacos do que é e oscilando quando se sopra a linguagem que o habita. Leiamos, portanto.
“É para cá, então, que as pessoas vêm para viver; eu diria, antes, que aqui se morre.”