spoiler visualizarPedro do Contra 20/04/2022
Uma crítica sofisticada a URSS wob um enredo bom de ser lido
Mestre e Margarida é uma obra singular, tendo em vista os outros clássicos russos. Mikhail Bulgakov se diferencia dos dois principais literatos russos, Tolstói e Dostoiévski, por dois aspectos centrais; primeiro por seu estilo pouco psicológico, não se detém aos aspectos mentais de seus personagens como Dostoiévski e Tolstói; segundo porque se utiliza muito bem do panorama histórico, das simbologias e do cenário onde a estória ocorre. Desde o início podemos vislumbrar que sua característica é muito mais descritiva do ponto de vista narrativo do local da trama do que propriamente analítico do panorama psicológico. As simbologias que ele se utiliza ? muitos deles retirados do eterno Fausto de Gothe, mas também de sombreamentos das histórias evangélicas ?, todos eles se mancomunam com a Rússia soviética e prevê, como de fato ocorrerá, uma crítica ao regime genocida.
É um verdadeiro baile de símbolos e críticas veladas que, àqueles que detém um certo conhecimento histórico do comunismo soviético, de seu retumbante fracasso e opressor governo, não tardará ao relacionar certas passagens ao autoritarismo comunista e às falácias do regime. Para evitar demais spoilers, tentarei não dar mais detalhes do conteúdo do livro; mas necessário se faz apontar ao menos dois casos ilustrativos que nos mostrarão a crítica de Bulgákov ao comunismo soviético de maneira mais circunscrita e visível.
O primeiro é a passagem onde Woland, mestre ilusionista e um dos principais da trama, em seu show teatral de ilusionismo faz com que chova dinheiro para a plateia; os espectadores ficam ensandecidos, agradecem e ficam deslumbrados com a peça do misterioso artista que também é denominado ?estrangeiro?, na obra; todavia, no mais tardar, as notas que o ?ilusionista? fizera cair, ao serem repassadas em comércios e táxis, se transformam em papéis comuns ou em demais objetos sem valor de escambo. A crítica à utopia marxista de distribuição de renda é extremamente visível; a teoria marxista de economia, onde o Estado faria ?cair do céu? a prosperidade a todos seus cidadãos, mas que, no fim, se mostrou apenas um ilusionismo político-econômico sem demais efeitos prósperos na realidade do Povo, é um ponto chave da crítica simbólica de Bulgákov.
Outra crítica do mesmo teor acontece no mesmo cenário que o anterior, nessa mesma ocasião, após a chuva de dinheiro, Woland, com ajuda de seus fiéis seguidores Behamont e Fagote, abre uma loja em pleno palco do teatro onde as damas poderiam trocar suas vestes por suntuosas roupas e sapatos de grifes. Bastando que as mulheres fossem corajosas e subissem no palco para fazer a troca. A maioria corre ao encontro das quitandas do demônio e fazem a troca num frenesi quase que esquizofrênico, ao findar do espetáculo, por sua vez, as mulheres que fizeram as trocas se encontram todas nuas em frente ao teatro, suas vestes luxuosas sumiram, dando um verdadeiro show Obsceno e engraçado aos demais transeuntes de Moscou.
A crítica aqui jaz no mesmo sentido que o anterior, todavia mostrando também que o Estado, o grande Woland do comunismo soviético, prometera ?riquezas? e condições melhores que o capitalismo yankee poderia propor, bastando apenas que os cidadãos soviéticos alienassem seus bens ao Estado e eles devolveriam riquezas mil vezes melhores e mais dignas. Todavia, no fim do espetáculo comunista, verificava-se que o Estado apenas desnudava seus partícipes e os deixavam na vergonha da nudez de roupas e dignidades; que, ao apagar das luzes, o verdadeiro estrangeiro ? o eterno inimigo fantasmagórico do comunismo soviético ? era o seu próprio Estado.
Sem dúvidas é uma das críticas mais inteligentes e sutis ao regime. Ao contrário do que fez Zamiátin e Orwell, Bulgakov utilizou mais das sutilezas, das simbologias desconexas da política de seu tempo, além de analogias que requerem conhecimento mais aprofundado dos meandros históricos do século XX e principalmente do comunismo. Obviamente, e nem precisaria citar, eu sei, a obra foi censurada pelo regime soviético e passou a ser mais conhecida fora dos domínios do Leviatã soviético para só depois de seu desmoronamento passar a ser largamente lido em sua pátria natal.
A editora 34 está de parabéns, como sempre fez um trabalho de apreciação prévia do texto original em russo, trazendo a versão mais recente aglutinada por uma das mais competentes estudiosas da obra e do autor, Ielena Kolycheva. Tal versão foi a lançada em 2014 na Rússia, tendo os manuscritos e os estudos da Ielena como condição para montar a versão final do romance e dos demais escritos de Mikhail Bulgákov. Até o momento vem sendo considerada de fato a versão final da obra em questão. A tradução de Irineu Franco Perpetuo é muito boa, suas traduções deixam uma fluidez muito agradável às obras, assim como mescla palavras eruditas com as de uso mais comum; não fazendo com que o texto fique inelegível em busca de um ?rebuscamento? desnecessário e arcaico, e nem um texto facilitado e pateta em busca de um simplismo bobo.
A edição está no estilo brochura, capa branca tradicional das edições da Coleção Leste desta editora, o miolo foi impresso em papel Polén Soft 70 g/m. Edição e cuidados mais do que satisfatórios para uma boa leitura; as fontes estão no tamanho agradável e as notas são precisas, ajudam de fato a compreensão do texto.
Obra mais que recomendada, mais do que necessária. Um texto russo para dar uma variada para além de Dostoiévski e Tolstói. Boa leitura