Leonardo 03/10/2012
O estagiário agente secreto em Angola
Disponível em http://catalisecritica.wordpress.com
Há pouco tempo recebi de presente de um amigo o livro A Gloriosa Família, de Pepetela. Até aquela data não havia ouvido nada a respeito deste escritor angolano. Ainda não li A Gloriosa Família, mas pesquisei um pouco sobre o autor e, por um daqueles acasos literários, eu estava numa livraria escolhendo o presente de aniversário que eu iria ganhar dos meus irmãos (tinha que ser um livro, é claro) e acabei encontrando a história deste detetive de tão sugestivo nome. Jaime Bunda, eu adivinhava, não podia ser um livro sério. Ele faria uma homenagem aos grandes detetives/agentes secretos “in an Angola way”. A primeira imagem que veio à minha mente foi Ed Mort, de Luís Fernando Veríssimo, que li há uns quinze anos.
Isso não seria, garanto, motivo suficiente para eu escolher esse livro. Uma pergunta me inquietou: o que tem a dizer o primeiro escritor angolano laureado com o Prêmio Camões com um livro desses? Li que Pepetela carrega suas histórias com ironia fina e muita carga política. O amigo que me presenteou com A Gloriosa Família me falou maravilhas do angolano, e confio bastante na opinião crítica dele.
Tenho que descobrir!, pensei, e comprei o livro.
Viajei e decidi trazer o Jaime Bunda comigo. E hoje reputo Pepetela como um dos mais criativos e habilidosos escritores que já li.
Jaime Bunda é realmente uma sátira. É um livro engraçado, repleto de situações absurdas e ridículas. Se fosse “só” isso, já seria um bom livro, já que a história é bem criativa, apesar de simples. Mas o caso que o estagiário agente secreto tem a resolver é apenas um detalhe, acreditem!
Jaime Bunda é de uma família tradicional, mas está do lado errado da árvore genealógica. Seus pais e seus avós não souberam cultivar as benesses de que dispunham e foram decaindo, decaindo, até que só lhes restasse o nome. Enquanto isso, alguns primos ainda estão muito bem posicionados, e é graças a um parente desses que ele ocupa o cargo de estagiário no serviço secreto angolano. Após passar muito tempo sem fazer nada, Bunda (que recebeu esse apelido porque, surpresa!, tem enormes nádegas), é escalado para resolver o assassinato de uma “catorzinha” num bairro pobre de Angola. A princípio, um caso desses não entra no escopo do serviço secreto, mas à medida que ele começa sua investigação, descobre perigosíssimas conspirações.
Jaime Bunda é mais inteligente do que as pessoas que o rodeiam, mas ele definitivamente não é muito inteligente. Esse é um dos grandes méritos de Pepetela: Jaime Bunda não é previsível, plano, uniforme. Se de um lado, tem uma enorme capacidade de observação (uma parte, natural, e outra, desenvolvida com a leitura à exaustão dos grandes clássicos americanos, a exemplo de Raymond Chandler e Dashiell Hammett), do outro, demonstra, às vezes uma impressionante estreiteza de visão, desenvolvendo raciocínios absurdos. Ah!, ele então é um tonto! Aí Bunda volta a nos surpreender, agindo com esperteza.
Mas não é o agente secreto o principal personagem do livro que recebe seu nome, mas Angola. Pepetela ama seu país e por isso odeia os corruptos, os exploradores, a submissão de Angola aos Estados Unidos, a burocracia, o governo incompetente.
Angola, eu descobri depois da leitura do livro, é considerado um dos países mais corruptos do mundo. Perto deles, o Brasil é a Noruega. Angola também tem um baixíssimo índice de desenvolvimento humano, sendo apenas mais um exemplo de que corrupção e desigualdade social andam sempre juntas.
Pepetela não cansa de mostrar tudo isso em cada frase. Mas nem só de corrupção e pobreza vive Angola. Há também a sensualidade das suas mulheres, a esperteza do seu povo, a religiosidade (e muita, muita superstição)... Há a incompetência generalizada do governo, o patrimonialismo, o jeitinho, as mutretas, a forte influência americana...
Peraí... Estou falando de Angola ou do Brasil?
Realmente há muitas semelhanças, mas, a julgar pela narrativa de Pepetela, Angola é um Brasil com os problemas multiplicados algumas (várias) vezes.
Jaime Bunda, por exemplo, vibra quando recebe seu telemóvel (celular). Sofre porque o carro do serviço não tem ar-condicionado nem um rádio. Na casa de sua mãe, num bairro pobre de Luanda, dormem sete pessoas, se não me engano, e é uma das casas menos populosas da região. O sanitário é uma fossa coberta com tábuas de madeira e cercado com pedaços de zinco, papelão, madeira, sem cobertura.
Em um determinado momento, alguém fala que se uma pessoa importante “apenas” tiver estuprado e assassinado uma “catorzinha”, mesmo tendo confessado, se livrará facilmente. A situação apertaria se fossem dez “catorzinhas”. É evidente a ironia de Pepetela, mas para uma situação ser aumentada por meio da ironia, é preciso que primeiro esta situação exista. Injustiça, nos diz Pepetela com esse outros exemplos, é uma regra em seu país.
Há, naturalmente, alguns exemplos de situações criticadas por Pepetela que são estranhas a nós, brasileiros. A superstição é uma delas. Um homem quer fechar seu corpo contra possíveis males, e procura uma espécie de feiticeiro. A forma como o corpo é “fechado” é inimaginável, inimaginável. Imagino que seja uma grande brincadeira do escritor, mas serve para mostrar como os angolanos são supersticiosos.
Ao terminar a leitura, ao mesmo tempo em que eu me sentia “aliviado” por não viver em Angola, eu queria conhecer mais o país. Fecho os olhos e vejo Luanda, o sol, a ilha, o porto, o cubículo onde dorme Jaime Bunda, o Roque Santeiro, uma imensa feira onde vende-se de tudo. Vejo os pratos fartos que Bunda comia tão sofregamente. Vejo os carros pretos passando, os burocratas fingindo que trabalham, os jovens ouvindo rap americano.
Pepetela dá voz, corpo e imagem à sua Angola, e eu só tenho a agradecer por isso.
Uma última observação, desta vez a respeito da técnica narrativa de Pepetela.
Metalinguagem, ousadia, bom humor. Há um narrador, que às vezes se mete a engraçado (e recebe imediatamente uma cortada do escritor, em itálico). Este narrador é substituído, depois volta, e o escritor explica suas razões, faz algumas considerações a respeito da inteligência dos seus leitores e mostra que tem completo domínio sobre as técnicas literárias.
Não vejo a hora de ler A Gloriosa Família!