Lucas 01/07/2017
Enciclopédia portátil do maior evento do século XX
A Segunda Guerra Mundial é, e até que algo parecido venha a ocorrer, o maior evento da Idade Contemporânea. Os impactos resultantes do seu desfecho definem o que se conhece atualmente por geopolítica; é obscuramente assustador pensar no que o mundo teria se tornado caso o seu término tivesse sido diferente.
Tamanha representatividade é simbolizada pela obra A Segunda Guerra Mundial – Os 2.174 dias que mudaram o mundo (título da versão brasileira, publicada pela Editora Casa da Palavra apenas em 2014, 25 anos após o lançamento em inglês) de Sir Martin Gilbert (1936-2015), um dos maiores historiadores do Reino Unido. Gilbert é mais conhecido no Brasil por ter sido o biógrafo oficial de Churchill, num dos mais aclamados trabalhos biográficos do século XX.
Não foi sem sentido nomear um livro com tamanha carga genérica, porque ele se trata de um "diário" do tema. É fato que a Segunda Guerra é uma fonte inesgotável de estudos e reflexões, cuja relevância jamais será plenamente estudada. E o autor, sabendo disso, relata o conflito nos seus mais recônditos pormenores. O abatimento de um avião britânico no interior da Alemanha, um tanque norte-americano combatendo baterias de japoneses nas Filipinas, um pequeno destacamento de soviéticos mantendo uma posição em Stalingrado (atual Volgogrado), entre outras ocorrências, são fatos, a princípio, minúsculos em todo um contexto de guerra, mas que ganham de Gilbert destaque e menção nas páginas da sua obra. Este detalhamento, que muitas vezes envolve cidades e locais (especialmente do Oceano Pacífico) desconhecidos ao brasileiro só fazem com que se adquira uma dimensão maior do que realmente foi o conflito. É natural que por aqui se pense, num primeiro momento, que um confronto dessa natureza ocorra com dezenas de ataques e operações enormes, todas friamente planejadas, que resultavam em ganhos de determinado lado. Isso certamente é uma influência norte-americana com seus filmes (muitos obras-primas, aliás), mas o autor demonstra que numa guerra quase sempre as coisas não saem totalmente como previstas.
Diante de tal enfoque, o holocausto também é minuciosamente descrito. As barbaridades motivadas por questões religiosas trazem boa parte dos momentos mais chocantes da leitura. Os detalhes disso não podem ser relatados aqui, mas o futuro leitor, que teve contato com "aulas normais" de história a respeito do massacre dos judeus e outros povos "não-arianos" e já se perturbou com isso deve estar ciente que Gilbert não ameniza em nenhum relato a respeito desse assassinato em massa, sempre com dados documentados, que aumentam ainda mais a sensação de estarrecimento.
O escritor britânico George Orwell, que viveu durante a Segunda Guerra Mundial, dizia que "a história é contada pelos vencedores". Mesmo que não de uma forma tão excessivamente exagerada, este é um dos artifícios que explicam um enfoque mais "ocidental" que é dado à narrativa de Gilbert, especialmente no que se refere à algumas ações da URSS no conflito e no reagrupamento pós-guerra de forças políticas no leste europeu, que acabou sendo o ponto de partida da Guerra Fria. Alguns detalhes internos do Exército Vermelho são um pouco ignorados, mas é provável que o autor não tenha tido muita facilidade de acesso a documentos soviéticos, já que a obra foi, conforme citado, lançada originalmente em 1989 (quando o regime soviético ainda não estava oficialmente derrubado, apesar de já se prenunciar isso). Mas essa prática não é totalmente válida: Gilbert reconhece e muito o valor dos soviéticos, dando um destaque relevante à Batalha de Stalingrado e à queda de Berlim, cuja primeira bandeira a tremular depois da suástica nazista foi a da URSS (ato que é bem valorizado na narrativa). É fato que o comunismo russo também foi vitorioso no conflito, mas a descrição geral dos fatos, em especial no fim da leitura, acaba se relacionando mais aos britânicos e aos EUA, cuja entrada na guerra foi, realmente, decisiva.
Adolf Hitler, o grande propulsor do maior conflito bélico da história é tratado de uma forma mista no livro. Por mais que ele tenha sido incontestavelmente um assassino (para dizer o mínimo), Gilbert se coloca no lugar do verdadeiro jornalista ao analisar as suas ações: relata os motivos, mesmo que funestos, que levaram o líder alemão a agir de determinada maneira, fazendo apenas críticas pontuais a sua postura e algumas vezes até humanizando a figura de Hitler. Esta forma de tratamento engrandece muito a leitura, especialmente quando relatado o desfecho desesperador do Führer.
Para os apaixonados por história, é fascinante perceber durante as páginas a presença de personagens e histórias reais, algumas eternizadas até hoje. Alguns personagens do filme que relata o ataque japonês a Pearl Harbor, a película que trata de uma conspiração contra Hitler (Operação Valquíria, estrelado por Tom Cruise) e a história contada pelo recente Até o Último Homem são exemplos mais famosos que aparecem na obra de Gilbert. Além destes, as menções à Anne Frank e o drama da sua família e outros personagens mais relevantes que participaram da guerra (como o ex-presidente John F. Kennedy) são relatados com maestria, aguçando a curiosidade histórica de quem se propõe a ler a obra.
A Segunda Guerra Mundial – Os 2.174 dias que mudaram o mundo é um livro enciclopédico: um minucioso diário de guerra, que informa e choca, sem artifícios narrativos rasos ou tendenciosos, formando um relato fiel do maior evento do século XX. Por ser detalhista, é ideal que seja lido com calma, até intercalado com outras leituras, já que o encanto desta obra não está meramente em passar os olhos por suas linhas, mas sim estudá-las, pois o conteúdo nelas expressas elucida enormemente a formação do que se conhece hoje como Mundo e as nações que o compõem.