jota 08/02/2020Afinal, Hollywood colaborou com os nazistas ou não? Escritor e historiador formado por Harvard, Ben Urwand descende de judeus e este seu livro sobre as relações entre Hollywood e o nazismo provocou muitas discussões acadêmicas e jornalísticas logo após o lançamento em 2013 (no Brasil foi lançado em 2014). David Denby, jornalista da revista The New Yorker especializado em cinema, escreveu logo depois um artigo cujo título foi uma pergunta indignada: “How Could Harvard Have Published Ben Urwand’s “The Collaboration”?” Quer dizer, como a editora de uma instituição respeitada como Harvard publicou esse livro que, segundo ele, partiria de um erro fundamental? A Colaboração – O Pacto entre Hollywood e o Nazismo, de Ben Urwand nasceu polêmico...
Pouco antes do lançamento, ainda em 2013, outro historiador, Thomas Doherty, havia publicado seu livro Hollywood and Hitler, 1933-1939, que teria caído mais no gosto dos críticos como Denby (por ser mais fiel a fatos já conhecidos, digamos assim) mas feito menos sucesso que o livro de Urwand, que continha novos documentos encontrados na Alemanha e novas teses sobre o assunto. O livro de Doherty (ainda) não foi traduzido para o português, então vamos ficar somente com o de Urwand e lembrar algumas críticas que sua publicação gerou. É bom destacar que Urwand fala em “colaboração” (collaboration) e não em “colaboracionismo” (collaborationism, do francês collaborationniste, aquele que tende a auxiliar ou cooperar com o inimigo), embora pareça estar usando sempre este segundo termo.
Que, como se sabe (com a ajuda da Wikipédia) “foi um termo que surgiu durante a República de Vichy (1940-1944) utilizado pelo próprio Marechal Pétain que, em discurso radiofônico pronunciado a 30 de outubro de 1940, exortou os franceses a colaborar com o invasor nazista. Posteriormente a palavra passou a designar a atitude de governos de países europeus que apoiaram a ocupação nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.” Isso posto, uma das críticas mais leves que Urwand recebeu foi por ter chamado Hitler de “o indivíduo mais importante do século XX”. O ditador alemão era um grande fã de cinema, não o homem mais importante do século passado. Foi o mais diabólico, porém.
Mas o que muita gente criticou com forte vigor foi o fato de que Urwand se esforçou para colocar no mesmo saco do colaboracionismo, tal como ocorreu particularmente em território francês, os negócios da indústria de filmes, a chamada “colaboração” de Hollywood, que não entregou ninguém nas mãos dos nazistas, não ajudou a mandar ninguém diretamente para a morte nos fornos crematórios ou em fuzilamentos sumários ou ainda para o inferno dos campos de concentração. Isso se passou somente na ficção, mas praticamente apenas depois do início da guerra: a “colaboração” hollywoodiana durou entre 1933 e 1938; a partir de 1939 a capital mundial do cinema tornou-se antifascista como nunca.
Durante o período nazista poucos filmes puderam mostrar ou fazer referências às atrocidades cometidas pelos alemães contra os judeus ou outras etnias e grupos minoritários. Personagens judeus não podiam ter cenas nos filmes e aos poucos até mesmo a participação de artistas com ascendência judaica foi proibida nas produções que quisessem ser depois exibidas nos cinemas da Alemanha: o país consumia muitos filmes americanos anualmente e gerava grandes lucros para Hollywood. Assim, para aqueles que defendem o livro de Urwand, que é baseado em profunda pesquisa não apenas no exame de filmes, livros, documentos etc. publicados nos EUA, também no estudo de arquivos alemães, uma coisa é certa, como diz o próprio autor:
“No decorrer da investigação, uma palavra se repetia com constância nos registros tanto alemães quanto americanos: ‘colaboração’ (Zusammenarbeit). E, aos poucos, ficou claro que essa palavra descrevia com precisão o arranjo particular entre os estúdios de Hollywood e o governo alemão na década de 1930. Do mesmo modo que outras companhias americanas, como IBM e General Motors, os estúdios de Hollywood colocavam o lucro acima dos princípios em sua decisão de fazer negócios com os nazistas. Eles injetaram dinheiro na economia alemã numa variedade de maneiras embaraçosas [os nazistas não permitiam mais a remessa de lucros para o exterior; dinheiro americano foi investido até mesmo na indústria bélica alemã]. Mas, como o Departamento de Comércio dos Estados Unidos reconheceu, os estúdios de Hollywood não eram simples distribuidores de bens; eram provedores de ideais e cultura. Tinha a oportunidade de mostrar ao mundo o que realmente acontecia na Alemanha. Nisso o termo ‘colaboração’ assumia seu pleno significado.”
É principalmente nesse ponto que os críticos mais ácidos se apegam para tentar desqualificar o livro de Urwand. Para eles, não houve um pacto entre os estúdios de cinema e os nazistas como houve na França de Pétain, não houve colaboracionismo portanto, mas negócios, como ocorreu em outros setores da vida americana. O problema é que grande parte dos poderosos estúdios de Hollywood pertencia a judeus e segundo a ótica de Urwand eles estavam pouco preocupados com o destino de seus semelhantes na Europa sob o domínio de Hitler. Num tempo em que os filmes exerciam uma poderosa força de atração sobre as plateias, muito maior do que hoje em dia, vários deles deixaram de ser produzidos ou foram mutilados e mesmo tiveram trechos refilmados porque não podiam desagradar aos alemães em muitos aspectos, especialmente quanto à estética e ideologia nazistas.
Várias proibições foram impostas por Berlim: elas tinham de ser seguidas à risca e foram aumentando com o passar do tempo. Tanto foi assim que até 1939 nenhum grande estúdio americano produziu qualquer filme manifestamente antinazista. Mas a sanha de controle alemão havia começado bem antes disso. Um importante filme pacifista de 1930 sobre a participação de jovens alemães na Primeira Guerra Mundial - baseado num grande livro, Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque (1898-1970), ele mesmo alemão de nascimento, descendente de judeus franceses, mas que fugiu do país para escapar do nazismo e da morte, certamente - ganhou inúmeras páginas de Urwand. O autor explica:
“Hitler era obcecado por filmes e compreendia seu poder de moldar a opinião pública. Em dezembro de 1930, dois anos antes de ele se tornar ditador da Alemanha, seu partido fez manifestações contra o filme da Universal Pictures All Quiet on the Western Front [Nada de Novo no Front] em Berlim, levando às primeiras instâncias de colaboração com os estúdios americanos. Pelo restante da década, ele se beneficiou imensamente de um arranjo que nunca foi discutido fora de uns poucos escritórios em Berlim, Nova York e Los Angeles.” Outros roteiros interessantes ou histórias curiosas jamais ganharam as telas porque ficaram completamente desfigurados pelas imposições nazistas ou foram sumariamente proibidos por eles. Por exemplo, o livro de Sinclair Lewis, It Can’t Happen Here (1935), uma sátira política sobre autoritarismo com um personagem que era a versão americana de Hitler, jamais conseguiu passar de roteiro cinematográfico.
Na chamada era de ouro de Hollywood os estúdios autorizavam que seus filmes fossem exibidos em primeira mão para o cônsul alemão em Los Angeles e cortavam tudo o que ele objetasse. Foi a partir dessa informação, dada pelo conhecido escritor e roteirista Budd Schulberg no final de sua vida, que Urwand passou nove anos pesquisando e investigando para escrever A Colaboração – O Pacto entre Hollywood e o Nazismo. Mesmo tendo cometido alguns excessos, como querem certos críticos, o livro de Urwand vale a pena ser lido, sem dúvida. Porque é muito mais do que apenas sobre Hollywood e nazismo, é sobre História. E é também uma obra muito bem escrita, muito interessante, enfim.
Lido entre 01 e 07/02/2020. Minha avaliação: 4,3 (muito bom).