spoiler visualizarCin 21/06/2021
Um livro para leitores curiosos e pacientes.
Quando eu digo curiosos e pacientes, eu realmente quero dizer alguém que tenha muita força de vontade para encarar o livro. Precisei ler duas vezes para entender um terço das referências sem viajar para outro planeta, pois alguns capítulos são bem monótonos.
A personagem principal é Reno, uma artista que se muda para Nova Iorque e é rodeada por artistas performáticos. A velocidade da sua moto Valera, dos carros de corrida e as competições são bem marcantes no livro fazendo referência a estes eventos que realmente acontecem nos desertos de sal dos EUA, onde as velocidades batem os mil quilômetros por hora. Além do mais, seu romance problemático com Sandro Valera também ocupa um espaço na narrativa e nos faz mais sentir ódio do homem do que qualquer outra coisa.
Primeiramente, como a história se passa em 1975, temos um conjunto de personagens que vivem para a performance. Ou seja, qualquer atitude era tida como quebradora de um padrão, uma efemeridade, uma maneira de transgredir a arte através da oscilação entre ficção e realidade, evitando a arte de comercialização. Essa corrente surgiu junto com as vanguardas históricas, como surrealismo, o dadaísmo e outras, aplicadas no teatro e aqui, nesta obra, viram o ato de viver. Henri Jean, que carrega um bastão pelos cantos, é uma figura icônica, que não faz nenhum trabalho para comercialização, apenas busca a perturbação. Giddle mentir seu nome, inventar que é órfã em uns casos e que tem pais amorosos em outros é disrupção, mas não me dá outra ideia de que se eu conhecesse esses personagens na vida real os acharia superficiais e não saberia o que é verdade ou não sobre eles. Resumindo: não andaria com esse povo de jeito nenhum.
Reler este livro fez com que eu pegasse mais ódio de Sandro Valera e ficasse um tanto irritada com o jeito contemporâneo de narrativa "quebrada", que vai e vem no tempo. Enquanto ele escondia sua identidade de herdeiro de uma família riquíssima italiana apoiadora do fascismo, gostava de viver sua vida em NY em uma eterna performance de pobre. Dizia que não se sentia merecedor de dormir em uma cama e aceitava trabalhar como guarda noturno em museu, enquanto ironicamente enchia seu apartamento com inúmeras camas por cômodos, enganava Reno com esse espírito ridículo de conquistador, traindo e se fingindo de sonso, se demitia dos empregos que eram só encenação e se achava um transgressor quando na verdade só era um homem rico que gastava seu dinheiro fácil recebido do fascismo e da exploração dos funcionários na fábrica Valera.
Por outro lado, também notamos personagens que precisavam de empregos para sobreviver, mas diziam trabalhar em nome da arte. Giddle, que queria atuar como uma mulher solitária, se enfiou em uma lanchonete suja, que a fazia se sentir como um nada, até perceber que a atuação havia virado realidade: se ela não trabalhasse, não teria dinheiro para viver e ainda estava amargurada. A arte de usar uniformes ridículos por um salário mínimo, dormir em um apartamento horrível e ter que atender clientes chatos não é uma arte tão interessante assim, certo? O mesmo acontece com Ronnie, melhor amigo de Sandro, que realmente precisa do seu emprego como guarda no museu para pagar seu aluguel e contas, não podendo desistir simplesmente porque cansou.
O livro é envolto de inúmeras referências: aos Tumultos de Watts (1965), um conflito entre policiais e a população, que levou a Guarda Nacional às ruas para conter os protestos - o que me lembrou um pouco as manifestações de 2020; a presença da Brigada Vermelha, a guerrilha paramilitar comunista italiana; os Motherfuckers, um grupo anarquista de influência dadaísta; e outras inferências relacionadas à filmografia estadunidense. Eu, particularmente, não sou muito fã de filmes, mas consegui perceber analogias à Bonnie e Clyde e a Wanda então, para quem gosta das telas, talvez possa acumular uma lista de novos títulos.
Algumas passagens fazem com que fiquemos pensando “mas o que raios está acontecendo aqui?” e é justamente o que ocorre quando um meteoro cai na perna de uma dona de casa. Cansada da sua rotina doméstica, como uma maneira de transgredir seu cotidiano, decide que não fará nenhuma das tarefas usuais. Essa é sua maneira de resistir: ficar sem fazer nada seria controlar seu tempo, mas no fim percebe que isso não lhe confere nenhuma liberdade – igual Giddle achando que trabalhar como garçonete em péssimas condições seria ser dona da sua arte. Com a chegada dos repórteres para cobrir o incidente, a mulher diz à vizinha que esse é o momento dela e não quer que ninguém tome sua vez. Novamente: igual Giddle, explorada, que achava que aquele era seu momento de autenticidade. Eu, particularmente, não vejo nada que seja uma coisa revolucionária nas atitudes dos personagens.
Ou seja, definitivamente não é uma leitura que voltaria no futuro. Posso dizer que aprendi coisas novas, mas fiquei igualmente irritadíssima com a hipocrisia e o jeito de ser de Sandro Valera. Acho interessante o ponto de vista da performance e como essa “liberdade de arte” não é igual para todos, assim como as movimentações de trabalhadores e conflitos com a polícia italiana, mas acho a Reno – como personagem principal – sem graça. Ela pode até participar do grupo dos artistas super diferentões do SoHo, mas chega a ser besta (nem tem como amortizar chamando de ingênua), caindo nas conversas de Sandro, ouvindo humilhações da sogra rica e mesquinha para depois ser traída. O livro é um universo gigantesco, daqueles que você tem que reler 50 vezes para entender um detalhe a mais, mas que conquistou meu desinteresse pelo sem noção que é Sandro Valera e deixa a impressão de que essa performance toda faz nada mais, nada menos que se encaixar na superficialização e cair na comercialização. A autora conhece muito, o que se faz bem claro nas referências e no clamor da crítica, no entanto realmente não me prendeu.