Lucas 05/11/2018
Sem "vino y empanadas": A história do maior atentado contra a democracia na América Latina
A República do Chile é, indubitavelmente, o país mais desenvolvido socialmente da América do Sul. É notável a sua alta qualidade de vida, infra-estrutura e bom desenvolvimento econômico que, se não são capazes de fazer da nação a mais forte economicamente da região, fazem-na o melhor lugar para se viver no continente sul-americano.
Tais atributos, todavia, são precedidos de um período obscuro em sua história, de pobreza, altíssima desigualdade social e uma situação política efervescente, simbolizada por brigas políticas que marcaram especialmente todo o século XIX e XX. O maior de todos estes conflitos foi o golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas em 11 de setembro de 1973, exatos 28 anos antes do atentado ao World Trade Center.
Fórmula para o Caos – A Derrubada de Salvador Allende pormenoriza toda a tensão política e social criada propositalmente para o enfraquecimento do Executivo chileno, por meio de ações que agrediram todos os princípios de soberania e unidade nacional que possam ser imaginados. Lançado em 2008 pelo professor e diplomata brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira (1935-2017), trata-se de uma obra jornalística sólida, marcada por dezenas de centenas de menções documentais dos fatos relatados, que dão crédito às mais nefastas manifestações de ódio contra um governo democraticamente eleito.
Salvador Allende representou a vanguarda de um movimento radical em uma época de grande tensão política mundial: foi o primeiro dirigente de esquerda que chegou ao poder por meio de eleições democráticas, sendo inclusive precedido de um governante da centro-direita, Eduardo Frei (1911-1982). Definindo-se claramente como um marxista e alcançando apenas pouco mais de 30% dos votos (a eleição nesse caso de maioria simples deveria ser referendada pelo Congresso), Allende tinha como propostas básicas aquelas típicas da sua ideologia: nacionalização/estatização de empresas mediante indenização, promoção de um sistema educacional totalmente público, ampliação das exportações com países do chamado Bloco Socialista (diga-se URSS e Cuba), entre outras medidas. Homem convicto e primordialmente constitucional, Allende tentou implantar essas medidas com uma leitura deficiente da realidade econômica de sua nação (muito dependente dos EUA) e do mundo como um todo.
Tal postura "revolucionária" seria aterrorizante para as "classes superiores" em qualquer contexto histórico, mas o início dos anos 70 foi um período onde esse terror era ainda mais desestabilizador: o mundo ainda seguia em ebulição pelas influências capitalistas e socialistas, que, se não provocaram um confronto direto entre norte-americanos e soviéticos, foram o fio condutor de inúmeras revoluções nacionais e golpes de Estado por todo o globo. A América Latina, em especial, era fruto de grandes preocupações dos Estados Unidos, originadas a partir da Revolução Cubana de 1959. A ilha caribenha, situada a menos de 200 quilômetros da costa da Flórida, tornou-se o símbolo maior da inquietação norte-americana, pois promoveu uma reformulação total da sua política externa a fim de garantir a influência nos países situados no continente americano.
Esta inquietação é exposta por Moniz Bandeira por meio dos incentivos que a CIA oferecia a determinados grupos políticos em golpes de Estado na Bolívia e no Uruguai, que antecederam à catástrofe chilena e que aparecem na obra. A chamada "fórmula para o caos" do título correspondia às formas de atuação, na maioria das vezes indiretas, que os Estados Unidos usavam para consolidar a América do Sul como um reduto de suas influências. Tais formas eram simbolizadas por fatos obscuros, como incentivo a grupos extremistas, planejamentos de ataques terroristas, manipulação de eleições, manobras militares, restrições a créditos financeiros a empresas nacionais, infiltração de diplomatas nas Forças Armadas, uma grande pressão psicológica sob a população, entre várias outras ações.
O golpe militar brasileiro de 1964 funcionou, de acordo com os documentos, como um "laboratório" bem-sucedido da fórmula em questão. Tal postura foi estendida à Bolívia e ao Uruguai (este último um "golpe frio", que não promoveu efetivamente a derrubada do presidente, no caso Juan María Bordaberry), ambos nos primeiros anos da década de 70 e que funcionaram como "ensaios" ao extremo dessa política de influência, que é o que foi visto no Chile: um golpe sangrento ao povo chileno e ao seu presidente constitucionalmente eleito.
Engana-se redondamente quem pensa que o golpe de Estado do Chile foi um movimento construído apenas para derrubar um presidente (e não um regime) e libertar o país "das garras do comunismo e da ditadura do proletariado". Também se engana quem acredita, após um olhar superficial da situação, que o processo de deposição de Allende foi rápido, surgido a partir de eventuais deficiências do seu governo. O fato, concreto e indiscutível, é que os Estados Unidos, por meio de diplomatas e agentes da CIA, agiram em conluio com partidos de oposição para semear o medo na população, impondo sanções econômicas descabidas que feriram sensivelmente a capacidade produtiva do Chile (especialmente a produção de cobre e salitre, as bases das exportações chilenas), atuando inclusive em sindicatos e órgãos de classe, trazendo o caos em todos os setores da sociedade. Isso tudo acabou trazendo para o jogo político (em defesa da preservação da ordem social) as Forças Armadas, cuja figura central era a do general-chefe do Exército Augusto Pinochet Ugarte (1915-2006). Posteriormente elevado ao cargo de presidente do Chile pelas forças golpistas, tornou-se símbolo maior da repressão em suas mais variadas formas. Sua postura em todo o processo de deposição choca, como o futuro leitor perceberá.
Moniz Bandeira, um ex-militante de esquerda, fez de Fórmula para o Caos uma obra curiosa: não possuí vícios nem vieses fortemente ideológicos, sendo "apenas" um grande trabalho de pesquisa histórica e jornalística que preza pela credibilidade de fontes. É muito diferente de outras obras que atingem entes da direita, como os escritos de Amaury Ribeiro Junior (autor de A Privataria Tucana) e do jornalista Paulo Henrique Amorim, que são repletos de ironias de criatividade questionável e que, de tão fortes e presentes, tiram a credibilidade do que expõem. Aqui, tem-se um texto maduro, responsável e que informa, sem o objetivo de "doutrinar" ninguém. Apesar disso, o autor limita seu trabalho apenas a acontecimentos que antecederam as eleições chilenas de 1970 (que conduziram Allende ao poder) até o fatídico 11 de setembro de 1973. Não expõe, por exemplo, nem uma vírgula a respeito da ditadura de Pinochet (que durou até 1990), marcada por expansão do PIB e abertura do mercado para investimentos externos, mas também por um aumento das desigualdades sociais e da já citada violência no sufocamento da oposição. Outra peculiaridade da obra é a manutenção no idioma original da imensa maioria das falas e discursos de políticos chilenos, o que prejudica um pouco a leitura para leitores não fluentes no espanhol, mas que não atrapalha a compreensão dos trechos. Os momentos derradeiros do governo de Allende, com a reprodução do seu último discurso proferido via rádio (cujo áudio pode ser facilmente encontrado na Web e que possui dramáticas interferências de sons de tiros) são reproduzidos de uma forma singularmente impactante, que superam toda e qualquer ressalva que possa ser feita ao escopo da narrativa.
O golpe de Estado chileno virou, com o passar das décadas, um tema mítico, que surpreende e aterroriza até hoje. Independentemente de posição ideológica do leitor, é plenamente abominável o desenrolar dos acontecimentos, culminando até com o supremo absurdo de bombardear a sede (Palácio La Moneda) de um governo eleito democraticamente e alguns acampamentos indefesos de apoiadores de Allende, tudo em nome da manutenção da ordem social, agitada pelos mesmos elementos que se diziam garantidores da mesma. Tal misticismo histórico nasce das ruínas de um governo que, de fato, tomou medidas controversas, mas que em nenhum momento desrespeitou a Constituição, tampouco buscou impor-se por meio da força. Salvador Allende e o seu desfecho trágico (bem esclarecido por Moniz Bandeira, já que há teorias da conspiração surreais sobre o seu fim) não são meramente elementos simbolizadores de uma tendência política radical: devem sim ser entendidos como exemplos do quanto qualquer democracia, por mais madura que seja, é sustentada por bases que podem ruir por simples influências e/ou factoides psicológicos e econômicos que visam apenas a manutenção do status quo de determinado grupo dominante.