Pereira 22/01/2024
Lima Barreto e um diagnóstico de país.
Em 2018, Mariana Ferrer acusa o empresário André Aranha de tê-la supostamente dopado e estuprado no interior de uma boate de luxo, onde estava a trabalho, levando o caso ao público por meio de suas redes sociais.
André Aranha, um empresário bem-sucedido, conhecido na cidade e com laços de proximidade com herdeiros do maior conglomerado de mídia do Brasil, atrai atenção popular e causa grande comoção.
Durante o julgamento, o advogado de defesa teria constrangido a vítima ao exibir fotos de Mariana em poses que ele afirmava serem "ginecológicas". O juiz, em sua sentença, inocenta André Aranha alegando falta de provas e a ausência de tipificação de "estupro culposo" na legislação brasileira.
Na trama de Clara dos Anjos, a protagonista vê seu futuro desgraçar-se ao ser seduzida, deflorada e abandonada por Cassi Jones. Ao buscar justiça, é confortada pela mãe do agressor, que argumenta: "Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas..." Mesmo com Cassi acumulando mais de dez casos de defloramentos, ele conta com "a benevolência secreta de juízes e delegados, que, no íntimo, julgam absurdo o casamento dele com suas vítimas, devido às diferenças de educação, nascimento, cor e instrução", permanecendo impune.
Apesar de terem se passado mais de um século desde a publicação de Clara dos Anjos, os paralelismos entre os dois casos são inegáveis. Ano após ano, o Brasil testemunha no mapa da violência o aumento dos casos de agressão contra mulheres, especialmente aquelas negras/pardas e pobres. Isso evidencia a importância da leitura de Lima Barreto, que fez um diagnóstico dos problemas fundamentais do Brasil, destacando os problemas estruturais enraizados em um passado marcado pela escravidão, subserviência e exploração dos corpos racializados.
Para Octávio Ianni, destacado sociólogo brasileiro, Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto formam o trio que inaugura a literatura afro-brasileira. Segundo ele, é impossível se deparar com a obra de algum desses três sem sentir a necessidade de refletir e se engajar na causa dos negros. Entre eles, Lima Barreto talvez seja aquele que mais se destaca na abordagem da questão racial, evidenciando sua emoção por meio de sua escrita.
Quanto à obra "Clara dos Anjos", Lima Barreto adota uma linguagem popular e uma forma narrativa novelesca, uma fórmula que hoje é amplamente familiar e compreendida pela maioria dos brasileiros. Isso torna a leitura facilitada, exigindo apenas uma pequena adaptação ao ritmo, e mesmo as palavras não usuais no contexto atual são de fácil compreensão, auxiliadas pelas notas mais do que suficientes presentes na edição da Companhia das Letras.
Lima Barreto testemunhou o Rio de Janeiro transformar-se na "cidade maravilhosa" durante seu processo de urbanização. As belas praças, encantadores jardins, amplas avenidas e suntuosos palacetes foram erguidos à custa da deterioração das condições de vida dos trabalhadores, do sofrimento da população mais pobre e de seu afastamento dos grandes centros para as áreas mais periféricas, conforme ditado pela elite higienista. Essas mudanças, aliadas ao legado racial brasileiro, permeiam toda a sua obra, revelando um retrato do subúrbio, do malandro e do burguês.