Ricardo Santos 31/01/2016Pinóquio perversoPriscilla Matsumoto é uma escritora jovem, mas que já mostra bastante maturidade. Seja em suas habilidades narrativas, seja na maneira como aborda temas difíceis.
Ball Jointed Alice não é para todos os estômagos ou cabecinhas. Acompanhamos aqui vários tipos de distúrbios mentais, de comportamento e familiar. Drogas, sexo e rock and roll, ou melhor dizendo, punk. Alguns podem classificar a história de emo, pelas atitudes sexuais, estados emocionais e referências à banda My Chemical Romance. Mas isso seria considerar apenas uma parte das influências da autora, que passam por Haruki Murakami e, claro, a Alice de Lewis Carroll.
Frank é um jovem perdido na vida, um artesão, que resolve criar uma boneca de molas, uma ball jointed doll, e a chama de Alice, nome de uma garota que se suicidou e por quem era apaixonado. Sem maiores explicações, a boneca ganha vida, como um Pinóquio contemporâneo. Junto com uma turma de amigos, ex-colegas de sanatório, e a curiosa Alice, Frank fará uma jornada pela cidade, cheia de excessos, de violência física e psicológica. O cenário se torna então um país das maravilhas bastante perturbador. Nem no mais louco dos seus sonhos Lewis Carroll poderia pensar numa versão tão delirante para sua Alice.
Realidade, sonho e pesadelo se misturam. Deixando protagonista e leitor sem chão, desconfiando de tudo. Quem viu o anime Perfect Blue consegue ter uma boa ideia do que se trata.
Dois nomes que não me saíram da cabeça enquanto eu avançava na trama foram Philip K. Dick e Kafka. O pesadelo da paranoia.
O maior mérito da autora foi saber dosar momentos de ação, o drama dos personagens sendo exposto, por meio de descrições e diálogos, e momentos de digressão, principalmente, de Frank, o narrador. Ela faz essa dobradinha com muita fluidez e uma poesia dura, de impacto. Além de lançar ideias sobre a vida e o mundo bem consistentes, iluminadas.
A autora também não sente nenhuma vontade de explicar muitas coisas estranhas que acontecem. E não precisa realmente. O clima de incertezas gera uma tensão constante, que deixa o leitor ligado na história.
Agora os problemas do romance estão em dois pontos.
Primeiro, os personagens. Frank é a única figura de fato interessante. Conhecemos a vida anterior e o que pensam os outros personagens. Mas nenhum deles tem a mesma dimensão de Frank. Tudo bem, ele é o narrador. Só que não é por isso que outros personagens não podem brilhar. Em Dom Casmurro, Capitu é vista o tempo todo pelo olhar do narrador, Bentinho. Capitu é uma personagem fascinante, retratada indiretamente e com menos espaço que o protagonista. Aqui não temos nada parecido. A interação dos personagens com Frank rende momentos divertidos, tocantes e profundos, mas os outros são sempre escada para entendermos ou nos apegar mais a Frank.
O segundo problema é o terço final do livro. É arrastado, cheio de explicações excessivas sobre o destino de personagens secundários e com uma sequência de filme de ação B apelativa. Uma total contradição com a poesia ora brutal, ora delicada de grande parte do romance, uma violência com causa mostrada anteriormente. Seria o caso dessa última parte sofrer uma edição severa, uma redução e reescrita.
Priscilla Matsumoto é uma autora de grande talento. Ela tem coragem e competência para criar uma literatura fora dos padrões, mas que consegue se comunicar.
A editora Draco fez um ótimo trabalho na versão em e-book, bem diagramada e com revisão quase perfeita. A capa incomoda pelo misto de inocência, sensualidade e terror estampado na imagem da boneca Alice, em seus olhos.
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