Luis 29/12/2014
Os pavões se revelam
Nos últimos anos, André Barcinski vem se firmando como um dos nomes mais significativos do jornalismo cultural. A publicação de “Maldito”, biografia de José Mujica, o criador do Zé do Caixão, escrita em parceria com Ivan Finotti, transformada depois em documentário premiado, além da atuação em revistas como Superinteressante, Mundo Estranho e na finada Flashback, atestam a sua capacidade de apurar episódios inusitados que contam a história do mundo pop.
“Pavões Misteriosos- 1974-1983: A Explosão da música pop no Brasil” (Três Estrelas, 2014) é provavelmente a iniciativa mais importante do jornalista até o momento. Primeiro porque cobre justamente um período desconsiderado da nossa bibliografia oficial : a fase que compreende da época de ouro do rádio até os anos 60 com a Bossa Nova e o Tropicalismo, assim como o Brock dos anos 80, tem sido vastamente investigado por pesquisadores e jornalistas, o problema é justamente a etapa que está entre esses dois marcos, normalmente tratado com desdém pela crítica especializada. É nesse fosso que Barcinski faz o seu garimpo e o resultado é ouro puro.
Um segundo aspecto fundamental e que transforma “Pavôes Misteriosos” em uma espécie de clássico instantâneo, é que, ao fim da leitura, ergue-se um painel realista da profunda transformação da indústria fonográfica brasileira entre o fim dos anos 70 e o início dos 80, quando as gravadoras, reagindo à crise econômica, passaram a apostar em poucos artistas mas que vendessem muito, ao invés de pulverizar os seus investimentos, permitindo que trabalhos mais autorais também vissem a luz do dia e potencialmente elevassem o gosto médio. É sintomático que mesmo os grandes astros da MPB, que na década de 70 talvez tenham chegado ao seu nível mais alto de sofisticação e experimentalismo, a partir de 79-80 fizeram movimentos claros de aproximação a um gosto mais “popular” com ressonância clara no mercado e nas execuções em rádio. Não por acaso, Fagner, Djavan, Gal Costa, Tim Maia, Caetano e Gil (aliás o disco Palco, gravado em Los Angeles com sonoridade claramente pop, é apresentado como referência desse momento) registraram algumas de suas maiores vendáveis nessa época.
Um caso emblemático é o de Rita Lee, que após fazer história com os Mutantes e dos excelentes discos roqueiros com a banda Tutti Frutti, inspirada pelo relacionamento com Roberto de Carvalho, mergulha de cabeça em um pop totalmente acessível, transformando-se em uma das maiores vendedoras do país (ocupa o quarto lugar geral da história do disco no Brasil, atrás somente de Tonico e Tinoco, Roberto Carlos e Nelson Gonçalves e à frente de Nelson Ned e Xuxa).
Um trio de músicos tidos como magos dessa “popularização” são absolvidos pelo livro: O produtor onipresente Lincoln Olivetti, tido como gênio pela grande maioria de seus pares, e a dupla Sullivan e Massadas, Reis Midas dos anos 80, responsáveis por quase tudo que tocou nas rádios naquela fase, em diversos estilos. Esses personagens , antes vistos como vilões da pauperização da música brasileira no período, são na verdade apresentados como efeito e não causa de um processo de reconfiguração geral da indústria do disco.
Mas Pavões Misteriosos traz ainda outros golaços : Pela primeira vez, temos uma avaliação justa sobre o fenômeno bem brasileiro dos falsos gringos, onde nomes como Fábio Jr, Cristian (da dupla sertaneja com Ralf), Jessé, Dudu França e outros, mais tarde famosos (ou não), se passavam por ingleses ou americanos inundando as paradas como Steven Maclean, Peter Dunaway, Dave Maclean, Mark Davis, etc. O auge foi mesmo com Morris Albert e sua “Feelings”, regravada por diversos artistas ao redor do mundo, sendo inclusive indicada ao Grammy.
Outra grande sacada do autor, foi se debruçar sobre a febre das covers que fez a festa das gravadoras brazucas por muito tempo. O negócio era mais ou menos assim : durante os anos 60 e 70, eram comuns o lançamento de coletâneas do tipo “Explosão de sucessos”, “Superxplosão Mundial” etc. A questão é que não eram usados os fonogramas originais e sim regravações das músicas feitas por músicos de estúdio que recebiam cachê para “imitar” `a perfeição os artistas das gravações “verdadeiras”. Como não pagavam direitos, o custo de produção era muito baixo, daí a avalanche desse tipo de lançamento. Entre os inúmeros músicos que dominavam esse mercado, destaca-se a incrível história da banda, apropriadamente chamada, “Os Carbonos” composta por músicos com a incrível capacidade de mimetizar qualquer gravação, independente do estilo. Só a história dessa banda, publicada também em forma de matéria na edição de setembro da revista Piauí, já vale o livro.
“Pavões” avança também na polêmica relação da indústria com o mundo do rádio e da TV, que, a partir principalmente dos anos 80, foi marcada pela prática do jabá. Chama a atenção o corajoso depoimento de Roberto Menescal, na época um dos diretores da Polygram, relatando uma negociação com Chacrinha para o lançamento de um artista da empresa (em outros livros, constam informações sobre a generalização do Jabá, ou, para usar um eufemismo, de “uma troca de interesses” envolvendo várias gravadoras e o programa do Chacrinha em sua última fase na Globo). Já o produtor Mazolla, que atuou na Warner e na BMG, diz que inclusive que o jabá muitas vezes não envolviam só dinheiro, há relatos de negociações de execuções em rádios em troca de mulheres e até drogas para programadores.
Curioso ainda é o relato sobre a montagem de bandas “fabricadas” através de pesquisas de mercado, ou seja, o avanço do tratamento da música como produto. O exemplo mais nítido, e muito bem retratado por Barcinski, foi o do grupo Balão Mágico. Montado pela CBS em 1982, o Balão vendeu muito bem logo na estreia. Para o segundo disco, a gravadora resolveu investir pesado e apostou em versões de sucessos infanto juvenis internacionais, um deles, “Juntos”, foi gravado com Baby Consuelo, então também em alta nas paradas. Mas o maior sucesso acabou sendo uma música que entrou no disco quase por acaso, “Superfantástico”, outra versão, assinada por Edgar Poças, que convenceu o produtor Mauro Motta a gravar a canção, apesar da resistência da diretoria da CBS. A ideia original era que Roberto Carlos cantasse com Simony e Cia, a letra da versão, aliás indicava isso : “Ei meu amigo Roberto/ Que bom estar contigo no nosso balão.” Poças achou que Roberto não ia topar e pensou então em Djavan, refez a letra : “Ei Djavan, meu amigo/ Que bom estar contigo no nosso balão.” Temendo que o autor de “Açaí” também não topasse, Poças alterou de novo, de forma que se aplicasse a qualquer cantor : “Superfantástico, amigo/ Que bom estar contigo no nosso balão.” Djavan topou e o grupo estourou.
Roberto só participaria do terceiro disco, quando o Balão já era fenômeno, inclusive com programa na Globo, cantando outra versão de Poças, “É tão lindo”. Segundo o livro, todo mundo ganhou rios de dinheiro com o Balão Mágico, menos Edgar Poças, justamente um dos responsáveis por todo aquele sucesso. O letrista expressaria a sua raiva em outra versão, gravada por um grupo tão fabricado quanto o próprio Balão, o Dominó. A música ? “Tô p da vida.”
Para terminar, André Barcinski trata de um case essencial da efemeridade que às vezes está associada ao pop : a ascensão e queda de Ritchie.
O inglês Richard Court chegou no Brasil na década de 70, tocou no mítico Vímana, com Lobão e Lulu Santos, mas por volta de 1980, estava afastado da cena musical, sobrevivendo como professor particular de inglês. Depois de participar de um disco de Jim Capaldi, Ritchie se empolga e grava uma demo no porão da Warner, com algumas canções de sua autoria. Recusado por André Midani, Ritchie mostra a demo para a CBS que lhe fornece o improvável horário de estúdio da tarde de 31 de dezembro de 1982. Nessa sessão é gravada “Menina Veneno”. Ritchie virou mania nacional e ficou milionário da noite pro dia. Vendeu milhões de cópias e era atração fixa de vários programas, inclusive do Cassino do Chacrinha.
A partir do segundo disco, tudo mudou. A música de trabalho “A Mulher invisível” não chegou nem perto de “Menina Veneno”, dizem que boicotado pela própria CBS. Segundo boatos, a gravadora chegou a pagar um jabá às avessas para que não tocassem a música. Não são poucos os que responsabilizam Roberto Carlos e seu staff pelo feito. Para completar, o cantor brigou feio com Chacrinha, se recusando a integrar as famosas caravanas do apresentador, que, contrariado, fez a sua caveira e o botou na geladeira. O castelo de areia do inglês ruiu.
“Pavões Misteriosos” é portanto um inventário de tudo de relevante que aconteceu no mundo do disco tupiniquim entre o início da década de 70 e o estouro do Brock. Vai ocupar com louvor a parte da estante destinada às obras de referência sobre a música no Brasil, como as escritas por Ruy Castro, Paulo César Araújo, João Máximo e Arthur Dapieve.
Impressiona como tanta informação interessante coube em meras 239 páginas, lidas em poucas e prazerosas horas, semelhante ao breve voo de um pássaro formoso.