Aguinaldo 13/01/2015
Lições de literatura russa
Terminei essas "Lições de literatura russa" de Vladimir Nabokov ainda em outubro deste ano, mas decidi deixar para escrever um registro de minha leitura apenas agora, no final de ano, em meu balanço. Talvez seja porque eu tenha lido coisas interessantes de Nabokov nesse ano; ou por conta de uma bela história da Rússia que li e que me impressionou ou apenas porque já terminei um ano de leituras com um livro russo (em 2011 finalizei o ano com uma resenha de um livro de Joseph Brodsky). Um crítico literário para Nabokov é "um sacerdote das opiniões médias dos leitores de cada tempo". Ele tem reservas ao ato da crítica ligeira (afinal qualquer charlatão pode emitir o juízo que quiser sobre um determinado assunto e imaginar-se tão fundamentalmente crítico quanto qualquer especialista ou erudito de fato, normalmente mais cuidadoso sobre o que fala e escreve). Entretanto o que é apresentado nessas lições não é simples crítica, mas sim notas de aula progressiva e recorrentemente utilizadas por ele em sua prática como professor universitário (por quase duas décadas, de 1941 a 1959, sobretudo no Wellesley College, em Massachusetts, e na Cornell University, em Ithaca, New York). O trabalho de compilação e organização das notas é assinado por Fredson Bowers (um acadêmico). Segundo Bowers os originais incluíam tanto textos manuscritos quanto material datilografado, além de fichas e quadros sinópticos, de forma que o material revela "estágios muito diferentes de preparação e polimento". Nessa compilação Nabokov fala especificamente de literatura russa, explica a seus alunos como ler adequadamente Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov, Liev Tosltói e Ivan Turguêniev (são, respectivamente, 48, 60, 34, 58, 110 e 40 páginas dedicadas a cada um destes autores). Uma pessoa que conheça bem as narrativas de cada um dos autores estudados aproveitará melhor as notas, muito embora o texto seja envolvente o suficiente para encantar qualquer leitor, mesmo o mais completo neófito dos assuntos russos. Há generosas transcrições das traduções de Nabokov dos originais analisados (ele desconfiava particularmente das traduções do russo para o inglês disponíveis naquela época: "traduções abomináveis" dizia). Um terço do livro é de traduções dos originais. Aprendi um bocado, mas o fato de ter lido pouco os russos certamente me fez perder muitas associações e ênfases. De qualquer forma Nabokov oferece ao leitor longas descrições sobre técnicas narrativas e sobre os fundamentos da construção de um romance, explica também os compromissos inerentes a esse ofício tão singular e atávico, que enfeitiça e destrói todo aquele cuja vaidade é maior que seu talento, disciplina ou esforço. Segundo ele, por exemplo, um escritor nunca deve ser ventríloquo de clichês jornalísticos de cunho fascista ou socialista (sorte dele não ter conhecido a literatura brasileira contemporânea), nem, tampouco, se impressionar com eventuais sucessos ou fracassos, de crítica ou público. Ele é implacável com Dostoiévski (para ele um escritor medíocre) e bastante generoso com Gógol, Tosltói e Tchekhov. Algo da biografia dos escritores que analisa é oferecido ao estudante/leitor, mas trata-se de algo secundário, o importante nas lições sempre é o que ele tem a dizer sobre a força inerente aos textos produzidos por eles. Nabokov oferece também muito de sua habilidade em interpretar como se comportam os seres humanos, sua descrição de como nos escondemos de nós mesmos quase sempre, através de mecanismos como hipocrisia, sarcasmo, mentira ou auto-ilusão. Transcrever as seminais frases de Nabokov rouba algo do prazer do leitor de descobri-las por si só durante a leitura, mas deixo aqui uma única, que exemplifica bem o absoluto de suas convicções: "É difícil evitar o lenitivo da ironia e o luxo do desprezo ao examinar a imundície em que mãos submissas, tentáculos obedientes comandados pelo polvo inchado do Estado, conseguiram transformar em meu país essa coisa ardente e fantasticamente livre que é a literatura. Além disso, aprendi a valorizar minha repugnância por saber que, me mantendo tão indignado, preservo o que posso do espírito da literatura russa. Depois do direto de criar, o direito de criticar é a maior dádiva que podem oferecer a liberdade de pensamento e a de expressão." Considerando que isso foi escrito há mais de sessenta anos só nos resta reconhecer que o fascismo e o totalitarismo nunca dormem. Grande livro. E há outros livros dele com esse tipo de notas de aula, livros dedicados a James Joyce, Miguel de Cervantes, literatura em geral, Alexander Pushkin e Nikolai Gogol. Vou procurá-los, seguro que sim.
[início: 27/09/2014 - fim: 08/10/2014]
"Lições de literatura russa", Vladimir Nabokov, tradução de Jorio Dauster, edição/introdução/notas de Fredson Bowers, São Paulo: Três estrelas, 1a. edição (2014), brochura 16x23 cm., 399 págs., ISBN: 978-85-65339-30-8 [edição original: Lectures on Russian literature (New York: Harcourt Brace Jovanovich / Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company) 1981]
site: http://guinamedici.blogspot.com.br/2014/12/licoes-de-literatura-russa.html