elske 28/04/2022
"Viver sempre vale a pena."
Este livro originalmente faz parte do livro "Corpo de baile", uma coletânea de 7 novelas, que hoje vêm sendo publicadas separadamente . Em "Noites do Sertão", há duas: "Dão-Lalalão (o devente)" e "Buriti".
"Dão-Lalalão (o devente)" tem como protagonista Soropita, um homem do campo, sertanejo, ex-tropeiro, que muito bem podia estar num filme do Tarantino: um homem que tem um ar muito calmo, sereno, pacato, mas anda a cavalo com mil pensamentos na cabeça, e às vezes nenhum, e tem um verdadeiro arsenal de armas de fogo guardadas por baixo do seu casaco. Além disso, tem uma história de cicatrizes, brigas e mortes: ele é famoso nas redondezas por ter matado certos jagunços (tudo em legítima defesa, supostamente), inclusive já foi para tribunais mas sempre foi solto. Ele mora com uma baiana, a Doralda, que no seu passado de prostituta era conhecida por Sucena. Até agora, não entendi o que significa o título dessa novela. Ela é curta, e me lembrou do princípio de Anton Chekhov, a “Arma de Chekhov": de acordo com o grande autor russo, todos os elementos apresentados numa história devem ser usados. Assim, se uma arma carregada é exibida no palco, ela deve ser usada eventualmente. Soropita tem muita imaginação, ciúmes, e várias armas carregadas. Usará alguma delas na história?
A segunda novela, “Buriti”, é mais longa e mais interessante. Ela narra os acontecimentos da fazenda do Buriti-Bom a partir dos pontos de vista do veterinário Miguel, primeiramente, e depois de Lalinha (mais interessante). O Buriti-Bom é o reino de iô Liodoro, o patriarca, um homem firme, sereno, que não transparece emoções, e se comunica muito através de silêncios. Ele tem duas filhas: Maria Behu, magra, feia, e muito religiosa; e Maria da Glória, bela, ativa, jovem, mulher que gosta de andar a cavalo e de viver. Também tem dois filhos, que não vivem no Buriti: iô Ísio, que vive isolado na sua fazenda, porque casou com uma ex-prostituta que não é aceita pela família; e iô Irvino, que se casou com Lalinha, porém abandonou a família para ir viver com outra mulher, auto-exilando-se da família. Assim, Lalinha acabou permanecendo na fazenda do Buriti-Bom, tendo sido trazida da cidade, e todos ficam, a história inteira, esperando que Irvino um dia volte.
A relação entre as três mulheres da casa (Behu, Glória e Lalinha) me lembrou muito o livro “As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles, que foca na relação das jovens Lorena, Lia e Ana Clara. Noto as semelhanças pela questão de como elas conversam sobre os amores, a juventude, a vida, os homens, e a relação estreita entre Glória e Lalinha é parecida com a de Lorena e Lia.
O amor e a atração sensual é um tema contínuo nessa novela/romance, e os personagens que habitam o Buriti-Bom e as fazendas ao redor vão sendo mostrados aos poucos, junto com seus interesses: nhô Gualberto Gaspar, amigo de iô Liodoro e seu maior bajulador; Chefe Zequiel, o “louco” que vive num moinho e sofre de insônia; as mulheres-da-cozinha (que podiam estar num filme de Miyazaki), que falam de tudo; mas, principalmente, o Buriti-Grande, o maior entre todos os buritis do Brejão, uma figura emblemática, um totem, algo que está sempre presente e é sempre referenciado e reverenciado por todos, quase sagrado.
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Este é o primeiro livro de Guimarães Rosa que leio, e foi uma ótima leitura. Escolhi deixar de lado o dicionário na maior parte do tempo, porque quando não conhecia uma palavra, podia ou estar lá, ou ter sido inventada (ou ser usada com outro significado) — é o estilo inconfundível desse autor. Há trechos realmente lindos e memoráveis, com parágrafos que se encerram em si, que são quase poesia ou poesia mesmo. Acredito que textos como esse só podem ser apreciados se forem lidos lentamente — como eu leio devagar, acho que deu certo. Em conclusão, é um texto de fato belo, poético e memorável, com aquelas qualidades de lirismo e beleza que a crítica jornalística enganosamente atribui a certos escritores contemporâneos. Ao final do livro, nos despedimos da história levando “no coração a paz resumida do Buriti Bom", e com vontade de voltar, e de ler tudo de novo, algum dia.
Como eu disse, foi uma ótima leitura. Acho que para ter a "optimal experience", sugiro ler o livro no meio do mato ou ouvindo Villa-Lobos.