Coruja 29/05/2015Já resenhei esse livro antes, quando li a edição em inglês nos meus esforços do Projeto Pratchett. Mas agora que o Cara do Chapéu voltou – finalmente – a ser traduzido no Brasil e, para melhorar, começando por um dos meus títulos favoritos da série, eu não poderia deixar de fazer algumas notas adicionais. Especialmente a se considerar a atualidade do debate de Pequenos Deuses.
Resumo básico da ópera: Brutha é um noviço da igreja omniana, dedicada ao culto do único e grande deus Om. Ingênuo, mas verdadeiro em sua fé, ele é o único crente que restou ao deus, que, ao tentar se materializar no mundo para o tempo de seu próximo profeta, consegue energia apenas para formar o corpo de um humilde jabuti.
Nesse interim, há uma guerra santa sendo preparada nas entranhas da Igreja, que envolverá Om e Brutha de uma maneira que mudará completamente suas existências.
Pequenos Deuses fala de religião: porque as pessoas precisam dela e como isso afeta suas vidas. Mais que isso, Pratchett nos traz uma série de questões éticas e morais que vão para além da crença e que terminam com a idéia de que o conhecimento é a melhor arma contra o atraso e o obscurantismo.
Em essência, a jornada profética de Brutha é um conflito entre fé, compaixão e tolerância e uma igreja estagnada, corrupta e opressiva.
O Omnianismo é uma religião inspirada na estrutura da Igreja Católica Medieval e assim há constantes alusões a questões como indulgências e a inquisição; mas podemos bem reconhecer de noticiários contemporâneos a persistência do fanatismo e da intolerância.
Talvez por isso, Vorbis – o grande vilão do livro – seja um personagem tão aterrorizante: é possível reconhecê-lo em todas essas histórias de jovens terroristas que largam tudo para se juntar a entidades como o Estado Islâmico. Vorbis parte do princípio de que qualquer quantidade de dor e sangue é justificável na busca pela Verdade, contanto que essa seja a SUA verdade. Afinal, ‘não é assassinato se você está fazendo em nome do seu deus’.
Vorbis é produto de uma estrutura lógica violentamente autoritária – uma Igreja que controla todas as esferas da vida de seus fiéis e que transforma o sofrimento em algo trivial – é a banalidade do mal de que já falava Hannah Arendt, os homens e mulheres sem quaisquer inclinações ao sadismo que serviam em campos de concentração e que se viam apenas como parte de uma grande máquina, incapazes de questionar o que estavam fazendo.
Não é à toa que Brutha é o único fiel que restou a Om: crentes aterrorizados não crêem mais no Deus, mas sim na instituição da Igreja. Considerando a irresponsabilidade com que Om sempre tratou sua Igreja – o que fica óbvio de suas conversas com Brutha sobre os livros sagrados – não é qualquer surpresa que isso tenha acontecido.
Deuses precisam de pessoas e pessoas precisam de deuses: todo o universo de Discworld se fundamenta no poder das histórias, onde se uma história ou lenda é contada por tempo satisfatório e há pessoas suficientes que acreditem nela, ela se tornará então realidade.
É claro que quando a repressão se torna demais, as sementes da revolução começam a surgir e em Pequenos Deuses isso se traduz na doutrina De Cheloniam Mobile: a tartaruga se move. Um dos dogmas do Omnianismo é que o mundo é uma esfera suspensa no espaço, mas a verdade é que ele é um Disco no formato de pizza sob o lombo de quatro elefantes gigantescos que, por sua vez, estão sobre a carapaça de uma tartaruga de proporções cósmicas nadando entre as estrelas – e é nessa verdade que se fundamenta a revolução.
O que, claro, é ironicamente hilariante ao percebermos que todo esse plot se fundamenta no Eppur si muove de Galileu, que foi obrigado a desmentir publicamente sua teoria de que a Terra era redonda...
Originalmente, Pequenos Deuses é o décimo terceiro volume da série Discworld, mas ele não está ligado a nenhum dos grupos de romances (os livros da Guarda de Ankh-Morpork, os dos Magos, das Bruxas, de Morte...), de forma que serve como uma boa apresentação para novos leitores de Pratchett.
O humor aqui é um pouco mais contido que nos volumes anteriores, e, de fato, é um livro divisor na evolução de estilo do autor: a partir dele, Pratchett prioriza a crítica aos tempos modernos através da sátira, deixando um pouco de lado piadas com as convenções do gênero de fantasia medieval.
A tradução, que era algo com que eu estava um pouco preocupada, porque Pratchett e seus trocadilhos nem sempre são fáceis de se traduzir, é boa. Faço apenas duas ressalvas que podem ser encaradas como escolhas editoriais e não um erro real: Om é um ‘tortoise’, ou seja, um jabuti, e não uma tartaruga.
Como temos aqui no Coruja um consultor biólogo e o Dé já tinha me enchido a paciência antes me mandando não chamar Om de tartaruga, repasso a explicação para vocês: tartarugas só aparecem em terra para colocar ovos e passam o resto da vida dentro d’água; jabutis são exclusivamente terrestres, exatamente como Om.
Pratchett entendia de biologia (era um particular fanático por orangotangos) e, no texto em inglês, ele diferencia Om como ‘tortoise’, de tartarugas, ‘turtles’. É razoável dizer que não-biólogos não vão se incomodar com esse detalhe, mas fica aqui marcado o ponto.
Minha segunda ressalva é para o uso do masculino em relação a Grande A’Tuin. Grande A’Tuin não é uma tartaruga (sim, ela é uma tartaruga, não um jabuti, nem mesmo um cágado) macho, mas uma fêmea – o que fica meio óbvio quando você lê sobre o que acontece em A Luz Fantástica. Mas, como Pequenos Deuses acontece num suposto passado do Disco, bem antes dos acontecimentos daquele livro, é possível considerar que a teoria da “Tartaruga se Move” não tinha ainda chegado ao ponto da discussão de sexos.
Dito tudo isso... Eu adorei reencontrar Pratchett traduzido nas estantes das livrarias que frequento. Eu pude ler em inglês todos os volumes da série já lançados (em setembro vai sair um póstumo com a Tiffany, que estou à espera), mas nem todo mundo lê em inglês e muitas vezes eu queria compartilhar essa história com amigos queridos e não podia. Agora ninguém mais tem desculpa e vou fazer TODO MUNDO ler Pratchett!
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