Che 07/11/2017
DIVISOR DE ÁGUAS CENTENÁRIO
Neste dia 7 de novembro, a Revolução Russa completa um século de existência. Fiz questão de ler há poucos dias o relato jornalístico mais famoso sobre esse período, escrito (ironicamente) por um estadunidense do Partido Socialista dos EUA chamado John Reed, na ocasião em que cobria os eventos da Primeira Guerra Mundial, juntamente com sua esposa, Louise Bryant. Fiquei sabendo da existência dessa obra há vários anos, quando tinha assistido o filme Reds (1981 movie), de Warren Beatty, que mesmo sendo um longa-metragem 'esquerdopata' conseguiu a proeza faturar alguns Oscars importantes depois de lançado, já na fase final da Guerra Fria. Por conta do filme e do centenário da revolução, lembrei do livro e achei que a ocasião para ler era perfeita.
O resultado foi uma leitura muito melhor do que eu esperava, mesmo já começando com uma expectativa alta. A obra de Reed supera com folga, mesmo no âmbito rigorosamente estético e narrativo (desconsiderando o informativo, porque aí é covardia) o filme de Beatty, já que este se foca demais em aspectos pessoais de Reed, de seu casamento e amizade com a anarquista Emma Goldman, embora também o filme seja bom e ainda hoje pertinente. Já o livro, apesar de ter uma proposta jornalística, é um espetáculo de tensão, pra acompanhar na ponta da cadeira sem saber exatamente o que vem nas páginas seguintes, mesmo pra quem já conhece os desdobramentos da revolução a priori, visto que o livro traz detalhes e experiências que normalmente uma obra de historiadores negligencia. Ou seja, pra além dos inegáveis méritos jornalísticos, "Dez Dias" é uma excelente peça de redação narrativa, com momentos de euforia, apreensão e outros simplesmente catárticos que tornam a leitura fluida e cativante.
Há um efeito de 'testemunha da História' que permeia o livro desde o começo, passando por um período de poucos dias (de meados de outubro no calendário juliano até o mês seguinte), mas nos quais o turbilhão de imprevisibilidade levava o povo russo a ir dormir com uma expectativa política hoje e já acordar com outra totalmente distinta amanhã. A Primeira Guerra Mundial levou a curiosidade de Reed a uma Petrogrado (futura Leningrado e ex-São Petersburgo) cinzenta, que alterna entre gigantescas movimentações humanas e outros instantes de silêncio de velório nas ruas, num início de inverno gélido no qual a neve passa a cair em escala progressiva ao transcorrer do livro - um cenário que parece evocar os escritos de Dostoievski sobre a mesma cidade.
Alguma coisa inusitada acontecia na então capital russa, o faro do jornalista ocidental o conduziu até lá e o que ele viu mudou profundamente - e concomitantemente - tanto a vida e carreira dele (embora já fosse um profissional consagrado por cobrir greves importantes e a revolução mexicana), quanto os alicerces que fundavam aquele país. Reed corre de um lado a outro, em questão de poucas horas de diferença entre várias reuniões partidárias decisivas, às vezes pegando o trem para ir a outras cidades, incluindo Moscou, sempre pormenorizando não só as descobertas, mas o 'clima político' geral desses ambientes. A sensação que temos, como leitores, é que um pouco de nós mesmos vai mudando junto com Reed e a Rússia, que nós partilhamos das tensões, dos medos e principalmente do enorme sentimento de mudança que permeava aqueles dias em particular, possivelmente os mais decisivos de toda a história do século XX.
O capítulo quatro ("A Queda do Governo Provisório"), pra mim o melhor e mais memorável dos doze, é o retrato perfeito do que é não só a narrativa geral do livro, mas a síntese política e, arrisco dizer, até psicológica e emocional do que foi o 7 de novembro de 1917 para as massas trabalhadoras de Petrogrado: começa de modo incerto, há uma série de falas e intervenções sobre dever ou não assumir o poder então ocupado por Kerensky - disputado ainda pelo oficial golpista Kornilov, socialistas de outros matizes, burgueses, alemães que guerreavam às potas da Mãe Rússia e até por monarquistas saudosistas do recém-deposto czarismo. Nesse turbilhão de indecisões, medos, receios, lutas, rompantes de coragem e muitas falas enérgicas, o capítulo encerra na noite daquele data, de foma catártica, de levar lágrimas aos olhos, com milhares de trabalhadores pobres colocando os pés no Palácio de Inverno, cercado de um luxo e sofisticação construídos sob a labuta deles, mas negado a eles desde sempre. Não por acaso boa parte dos revolucionários mencheviques era composta por acadêmicos de nariz empinado, que tratavam esses trabalhadores como 'ignorantes chucros', como várias passagens do livro deixam transparecer.
"Dez Dias" ainda conta com um trabalho jornalístico primoroso, feito por um profissional de energia incrível, contando então com apenas trinta ano de idade (exatamente como eu, no momento em que li o livro), que estava sempre nos lugares certos e nas horas certas. Há uma vasta descrição de diálogos de líderes bolcheviques, principalmente Lênin e Trotski, mas também de uma série de oposicionistas dentro do próprio âmbito revolucionário, sempre envolvendo a dúvida se deviam ou não avançar da república recém-conquistada no rumo da "ditadura do proletariado". Reed ouve todos os lados, não se omite em momento algum de transcrever discursos e cartazes da oposição a Lênin e demais bolcheviques. Mas como todo jornalista honesto, ele deixa claro que tem sim um lado - o dos revolucionários mais radicais - e não tenta posar de 'imparcial', muito embora seu livro seja um mosaico de vozes e várias vertentes políticas. É como se Reed cobrisse com certa isenção os acontecimentos, mas sem esconder que 'torce' pra um dos lados. A meu ver, é um fator positivo, já que neutralidade jornalística é um mito usado por espertalhões, geralmente da imprensa de direita.
Pena que Reed tenha falecido prematuramente de tifo em 1920 - sendo sepultado, com todo mérito, com honras de herói perto do Kremlin em Moscou, somente um ano depois da publicação deste livro, que chegou a ser prefaciado pelo próprio Lênin em algumas edições. A única tristeza que fica da experiencia não só informativa, como catártica e emocionante, que a leitura de "Dez Dias" nos traz, é notar que a União Soviética fruto daquela revolução não existe mais, que muitos dos problemas de camponeses e operários narrados no livro persistem até hoje e do quanto, mais do que nunca, o mundo carece de outros revolucionários como aqueles, um século depois da reviravolta que causaram no planeta. E a certeza de que, fora o poder, tudo é ilusão.