spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 26/07/2020
Aberto está o inferno
Livro do contista sergipano Antonio Carlos Viana. São 33 textos inéditos desse sergipano que se tornou referência nacional no gênero. É a segunda publicação dele que eu leio e mais uma vez fiquei impactado com a alta qualidade literária e riqueza narrativa de cada conto. São histórias de um Brasil miserável, cru, mas ao mesmo tempo fascinante.
Ana Frágua- conto narrado em terceira pessoa. Fala de um garoto prestes a perder a virgindade. Aconselhado pelo irmão mais velho e por amigos, ele junta dinheiro fazendo carrego e vai a uma humilde casa de prostituição da cidade procurar pela experiente Ana Frágua. Ela havia acabado de chegar do Centro da Cidade, havia extraído três dentes e disse ao menino que não poderia se sacudir muito. Trouxe-o para cima dela. Estava seca, passou uma pomada e o menino conseguiu ótimo desempenho saindo na hora e sujando o lençol. Ficou com vergonha. Ana o elogiou e disse que ele ainda daria muitas felicidades às mulheres. Orgulhoso, saiu de lá e até esqueceu de pegar. Ela, também satisfeita, nem reclamou.
Quando meu pai enlouqueceu- conto narrado em primeira pessoa e, como o próprio título sugere, narra o momento em que o pai dele perdeu a razão. Aconteceu em um dia de muita chuva, assim como decorreram outras tragédias familiares. A família havia se mudado para o Rio de Janeiro e estava retornando para casa, não havia dado certo aquela jornada. O pai havia se indignado com o suicídio de Getúlio Vargas. De alguma forma, matou as esperanças do trabalhador naquela nova cidade. A mãe e os irmãos estavam felizes com o retorno, mas o pai sentia-se um derrotado retornando sem glória alguma para casa. A viagem, com dinheiro contado, foi feita de três, cheia de contratempos. Primeiro, uma ponte quebrou e tiveram que fazer uma boa parte do percurso a pé, arriscando a própria vida. Foi nesse momento que ele começou a apresentar os primeiros sinais. Depois as fortes chuvas interromperam a jornada, tiveram que ficar uma semana em uma precária pensão. Ao chegar ao destino, após tanto sacrifício, o pai definitivamente já não era o mesmo.
Pedido- conto narrado em primeira pessoa por Davizinho. Ele fala de uma vizinha que está em estado terminal, com uma doença rara, nas últimas mesmo. Ele a conhece desde que era criança, quando brincava com os filhos dela. A casa de Maria era a mais abastada da rua. Era uma família próspera, mas que foi se desfazendo. Os filhos, quando cresceram, foram morar fora. Maria contraiu uma doença rara e foi definhando. O marido a trocou por outra. Certo dia, quando se preparava para ir para a academia de ginástica, Davizinho foi chamado pela empregada de Maria, queria falar com ele com urgência. Foi com medo, ver uma pessoa que conheceu naquela situação com certeza seria uma experiência traumática. Logo se lembrou de quando ia naquela casa brincar com os filhos de Maria, corriam pela casa. Já esteve naquele quadro correndo com os amiguinhos, flagrou várias vezes Maria de calcinha e sutiã. Ela nem se escondia, piscava para ele com uma cara estranha. A doente falou que os médicos levaram quase todo o dinheiro que tinha, mas que ainda sobrara um pouco e gostaria de dar a ele, sabia da situação financeira da família. Ele se impressionou com a magreza dela. Ela pegou a mão dele por duas vezes e colocou dentro da camisola dela, para sentir os batimentos, e fez movimentos com a mão dele alisando primeiro o seio esquerdo e depois o direito. Davizinho ficou completamente traumatizado e sem reação. Vendo que dali não sairia nada, Maria disse que o rapaz sempre foi um molenga. Logo, ele lembrou de um episódio quando ainda era criança. Maria alisando as partes dele e perguntando ?onde estava?. A senhora caiu no sono de repente. Talvez efeito dos remédios que tomava. Ele aproveitou para deixar aquele lugar. Evitava até passar em frente daquela casa depois disso. Mas sentiu um alívio quando a viu cheia, com carros na porta. ?Que Deus a tenha?. Nunca pronunciou na vida frase mais reconfortante.
Mal-assado- conto narrado em terceira pessoa. Conta a história de uma mulher extremamente infeliz no casamento. Tentou separar uma vez, foi para a casa da mãe, um cubículo onde morava com mais seis pessoas. Trabalhou em tudo quanto foi profissão para tentar se manter, até prostituta foi, mas desistiu. Resignada, voltou para o barraco tentar salvar o casamento. Era uma vida muito miserável, com aquele ogro que não lhe tratava com carinho, não lhe dava prazer algum. Depois que saia de cima dela, caía para o lado e ia dormir, igual a um porco. Prazer ela nunca tinha. Ele acordava de madrugada querendo mais, ela fingia sono profundo e ele ia se aliviar no banheiro. Outra situação humilhante para ela, como se não fosse capaz de dar satisfação plena para aquele homem. Não pensava em traí-lo, até que se encantou com os olhos do açougueiro. Um dia, do nada, acabaram transando, foi tudo muito rápido, de forma improvisada, lá mesmo no açougue, em meio àquelas carnes penduradas e pingando sangue. Quando terminou, ele ergueu as calças e disse a ela que havia um banheiro ali próximo. Não quis se lavar, estava um pouco enojada daquele ambiente, mas teve um prazer que jamais sentiu na vida. Ganhou uma carne do açougueiro e fez um mal-assado para o marido. Dentro dela veio um ódio sem tamanho. Ele mastigava feio, com a veia do pescoço saltada.
A linda Lili- conto narrado em primeira pessoa. O narrador é um garoto que vê uma verdadeira transformação operar na irmã dele, a Lili. A menina é religiosa, canta lindamente e é cheia de vida. Porém, a medida que cresce, insiste em não tomar corpo de mulher e nem menstruar. A família já estava preocupada, fazia promessas e tentava todas as simpatias e receitas para ver a menina moça. Um dia, do nada, durante uma cantoria de Lili, o sangue começou a escorrer pelas pernas. Foi uma festa só no princípio. Depois a levaram para o quarto e tudo ficou silencioso. A menina não parava de sangrar. Perdeu o brilho no olhar. Levaram-na para o hospital. Ficou um tempo internada. Quando voltou, o irmão havia reparado uma total mudança no corpo de Lili. Estava mais inchada, mulher feita. Havia resgatado um pouco daquele brilho, mas reclamava que teria que usar aquele paninho entre as pernas todos os meses. Ela encostou a cabeça no ombro do irmão e enxugou os olhos chorosos. Foi aí que o menino sentiu pela primeira vez seu corpo dar uns estranhos sinais.
Barba de arame- conto narrado em terceira pessoa que traz um comovente relato de como uma garotinha foi sucessivamente abusada. Ela morava em uma condição extremamente humilde. Faltavam-lhe o básico. Nem mesmo lugar para fazer as necessidades tinham. Faziam nos becos, nos rios, nos terrenos baldios. Certo dia, um homem avistou a menina nesta condição, chamou-a e cometeu o primeiro abuso. Ela ficou encantada com o cabelo loiro comprido e os olhos azuis. Vislumbrou nele o Jesus da folhinha de calendário. Doeu bastante tudo aquilo, até sangrou, e a barba dele parecia um arame, machucava muito. Quando terminou a ação libidinosa, perguntou o que a menina queria ganhar. Ela disse que sonhava em ter uma latrina para ela e a mãe poderem ?cagar? de forma decente. Passou a aguardar de forma ansiosa aquele presente. O homem a enrolava e cometeu diversos outros abusos, inclusive levando outros homens. Ficou um tempo se aparecer, mas a menina, em sua inocência, não perdeu a esperança de ter a sua latrina. O homem retornou, mas o terreno onde cometia os abusos estava desativado. Chamou a menina para a casa dela mesmo. Até que a mãe flagrou e o abusador fugiu. Levou a menina para a delegacia, fizeram uma porção de perguntas estranhas para ela e um médico a futucou, futucou, futucou e não falou em latrina.
Mulher sentada- conto narrado em primeira pessoa que conta a história de uma mulher que já está avançando na idade e sente as mudanças em seu corpo sob os mais diversos aspectos. Trabalha há anos em uma mesma empresa e está prestes a se aposentar. Não sabe se isso é bom ou ruim. Jamais se casou ou viveu uma grande experiência na vida. Manteve aquela rotina linear. Acostumou-se há algum tempo a vislumbrar aquela bela baía, era o cenário que via praticamente todas as manhãs. A maior emoção que vivia durante o dia era a travessia de barca que, com o passar do tempo, acabou ficando monótona. Queria tirar logo as férias, com medo de o estresse tomar conta de seu corpo. Pensou em fazer uma viagem, visitou agências de turismo mas tinha medo de viajar. O medo sempre a impedia de ser mais, de viver mais.
Gatos em estado terminal- conto narrado em primeira pessoa por um dos protagonistas, um senhor que vive sozinho com a esposa, Joana. Os dois estão vivendo uma fase bastante tediosa da velhice, em que não encontram muitas perspectivas e não têm muito com o que se distrair. Os dois já não conversam muito um com o outro, falta assunto. Evitam também se olhar para não enxergar as marcas cruéis do tempo. Não tiveram filhos, não possuem animais de estimação. Ele mesmo não é muito chegado aos bichos. Porém, um dia, caminhando pelas ruas, acharam um gatinho abandonado, que olhava para o casal com uma carinha de súplica. Já estava naquele canto há mais de uma semana. Depois de alguns dias, resolveram levar o felino para casa. Cuidaram dele com todo o esmero. E o homem se apegou fácil ao gato, talvez tenha sido o primeiro bicho pelo qual ele teve compaixão. O gato deu um novo propósito para a vida deles. O problema é que, mesmo com todos os cuidados, ele não recobrava a saúde, estava bem fraquinho e machucado. Resolveram levá-lo ao veterinário, que praticamente o desenganou. O casal não mediu esforços, comprou todos os remédios. O gatinho olhava para os dois com os olhinhos agradecidos, mas estava cada vez mais magrinho. A morte era certa e questão de tempo. Encarar todo aquele processo estava sendo bastante doloroso para eles. Cogitaram em devolver o gato para aquela calçada, matá-lo sufocado ou dar chumbinho a ele, mas aquela era uma das mortes mais dilacerantes. O gato morreu dias depois, não precisaram usar nenhum daqueles recursos. Mas ficaram tristes e inquietos. Depois daquela experiência, nunca mais seriam os mesmos, principalmente porque sabiam agora que matar confina com piedade.
Doutora Eva- conto narrado em terceira pessoa sobre uma juíza, já chegado à terceira idade, extremamente vaidosa, com inúmeros cremes e cuidados com a pele e com o corpo. Não fez cirurgias plásticas com o passar do tempo, tinha medo do bisturi, mas conseguia fazer bem o uso do botox. Quando jovem, era de uma beleza esplêndida, cobiçada sempre pelos colegas, campeã dos concursos de beleza com frequência. Só não disputava miss por achar cafona. Certa vez, já como juíza, nos tempos atuais, foi convidada para ser entrevistada em um jornal matutino. Quando se assistiu, ficou assustada com sua expressão. Aquela luz intensa no estúdio mostravam de forma implacável as marcas do tempo, seus defeitos adquiridos com a idade. Ficou com raiva da apresentadora e dos auxiliares de estúdio que jogavam aquela luz forte em cima do rosto dela. E também, como alguém ficaria bonito naquela hora da manhã. Possessa, foi ao banheiro acometida de uma forte dor de barriga. Evacuou categoricamente, suportou firme todo o mau cheiro e lamentou não haver uma casta de pessoas bonitas que não precisassem fazer aquilo, que acabava igualando todos os mortais, os feios e os bonitos. Quando se levantou para se limpar, encarou pela primeira vez na vida a própria merda. A sensação, pode-se dizer, foi de certo alívio por sentir que era imperfeita e não se cobrou tanto por isso. Era de certa forma libertador.
Namoradas têm fome- conto em primeira pessoa. O narrador é um homem que está dormindo em sono profundo, para lá de meia-noite, e é acordado pela namorada, que está com fome e insiste em sair para achar algum restaurante. Mas naquela hora? Há algum aberto? Ela insistiu e foram. Passaram por vários restaurantes e não encontraram nenhum funcionando. Ele estava extremamente cansado e irritado. Parece que ela sabia como provocá-lo. Depois de tanto rodarem, foram achar apenas uma loja de conveniência aberta. Ela pegou um strogonoff, esquentou no microondas e foram para a mesa. Já eram para lá de duas da manhã e a irritação dele só aumentou ao ver como ela iria demorar para comer tudo. Houve um princípio de briga. Ele foi para o carro, já estava sem sono quando ela chegou. Buscaram um local mais afastado, fizeram as pazes daquele jeito, ele bastante intenso, como se quisesse ?descontar? a raiva que passou penetrando-a bem forte. Já era de manhã quando a deixou em casa.
Reverendíssimo Padre Diretor- é uma carta de um homem para o diretor de uma antiga escola religiosa onde ele estudou quando mais jovem. O protagonista conta como está sua vida e diz que ele não foi a pessoa bem-sucedida que o padre imaginou que ele fosse, ou que teria que ser. Ao longo do texto, ele vai relembrando a educação rígida que teve lá e como, em alguns casos, aquilo não lhe preparou para a ?vida real?. Em certos momentos, vira quase um confessionário o texto. O autor da carta chega a citar um sermão que ficou para sempre na memória dele e que dá título ao livro: ?Aberto está o inferno e não há véu nenhum que cubra a perdição?. Citou isso para dizer que quase sempre acorda com esse sentimento de ?causa perdida?. Interessante também que ele diz que, desde os tempos da escola, com o padre, tinha imensa dificuldades de formular parágrafos no texto. E a carta vem realmente quase inteira em um único parágrafo gigante. Ele parte para outro apenas no final e anuncia que, enfim, abre um novo parágrafo.
O dia de Cícero- conto narrado em terceira pessoa. Cícero jamais imaginara, ao acordar naquela manhã, que sua vida mudaria completamente até o fim do dia. Levantou com uma dor de dente insuportável. Pegou a marmita e foi para o trabalho. O ofício era como coletor de lixo. Teve que suportar mais um dia extremamente desgastante, com intenso calor, recolhendo na praia casca de coco e bagaço de cana. Já estava morto de fome no meio da manhã e com a dor de dente lhe tomando o juízo. Em uma breve parada, não aguentou e pegou a marmita para comer. Era a única refeição que praticamente teria. Já imaginava como faria para suportar a fome que viria mais tarde. Não sabia lidar com a fome, perdia a cabeça. E aquela dor de dente lhe tirava também o juízo. Eis que chega o supervisor e o chama de preguiçoso, manda voltar ao trabalho imediatamente. Ele explica sobre a dor de dentes e o arrogante chefe pergunta por que ele não arranca tudo de uma vez. Os colegas de trabalho só ouviram o barulho da pancada e o chefe caindo duro no chão. Cícero, não resistiu à prisão. Pouco tempo depois, mudaram o crime de doloso para culposo. Pouco importava. Ele nem sabia o que era aquilo.
Porque em Marrakech- conto narrado em terceira pessoa, traz a história de um casal brasileiro turistando em Marrakech, local nada turístico, sem o conforto das cidades badaladas. A esposa estava adorando o passeio, empolgada com as descobertas, com as novidades daquele exótico lugar, e ele mal-humorado e sem curtir muito o passeio. Vinham de um city tour e foram para o quarto do hotel. Ela, já nua, procurava o maiô para dar um mergulho na piscina. Ele disse que só iria mais tarde. Àquela altura, já sentia uns nós na tripa. Era a mistura do calor intenso, com o passeio desinteressante e algo que comeu e não fez bem. Sozinho, no quarto, veio a primeira golfada. Ela trouxe um certo alívio e ele tentou dormir, expelindo gases tão fedorentos que tinha medo de alguém sentir aquele cheiro de esgoto. Acordou um tempo depois com a mulher gritando do chuveiro, reclamando do sabonete do hotel. Daqui a pouco, ela viria perfumada, com a toalha na cabeça. Era o indicativo de que queria fazer amor. Ele torcia para que não viesse nenhum outro nó na tripa.
Sexta-feira Santa- conto narrado em primeira pessoa. O narrador é um senhor, que relata a vida de casado com Joana. Os anos de cumplicidade fizeram com que o casal tivesse uma comunicação muito eficiente. Um entendia o outro em pequenos gestos, o que deixava a amiga deles, Betina, boquiaberta. Mas os anos e anos de vida a dois também sabem desgastar uma relação. O sexo, claro, não estava mais presente há anos. Havia meio que um cansaço mútuo, um começava a enxergar os defeitos, sobretudo físicos, do outro, advindos principalmente da velhice. Filhos, não tiveram, ela o responsabilizara pela esterilidade. Tentaram até criar uns animaizinhos para ver se aquilo os aproximava novamente e nada. Muitas vezes, vinha aquele questionamento interno se tudo realmente tinha valido a pena. Internamente, um meio que desejava a morte breve do outro para aproveitar em liberdade o restinho de vida que teria. A narração da parte final do conto é tocante. ?O pescoço de Joana, um amontoado de pregas claras, os lábios finos, apertados em um ricto de dor. Eu tive pena, ela que fora tão bela. Acariciei-lhe o pescoço, recuperando um gesto antigo, tão nosso já desconhecido, e como, dentro de um sonho, ela foi aproximando o corpo do meu. Os cabelos pareciam algodão sujo caindo sobre a cama. Senti que o caminho estava aberto. Fui acariciando de forma nova aquele pescoço e Joana e Joana em uma entrega como fazia anos não acontecia. Havia em seu gesto uma forma de dizer as coisas que não estava em nenhum dos nossos códigos. Fui aumentando a pressão de meus dedos. Ela parecia sorrir. Eu estremeci um pouco. Não sabia ainda que tinha tanta força em mim. Quando senti sua cabeça pendida, fui até o banheiro lavar as mãos e ao me olhar no espelho foi que me dei conta de que era Sexta-feira Santa e que minha cruz eu já havia carregado?.
Senhas- conto em primeira pessoa de um garoto narrando a rotina dos pais. Sempre ali, pela hora da voz do Brasil, o pai se trancava com a mãe e só se ouvia os pigarros do pai. Sempre naquele horário. Os pigarros vinham seguidos de um risinho da mãe. Depois ela saía do quarto bem humorada e pronta para o banho. Dizia para as vizinhas que homem bom é o que pigarreia. Com o tempo, os gemidos foram desaparecendo, ao passo que a mãe dele entrava em um mau humor desgraçado. Durante muito tempo não se ouvia mais os pigarros do pai. Até que um dia, do nada, ele pigarreou, a mãe sorriu e parecia outra. Porém nos dias subsequentes não voltou a pigarrear. Um dia, o garoto espiou a porta entreaberta e viu pela primeira vez a mãe nua, com cara de lamentação, e o pai do outro lado da cama, inconsolado. Dias depois, foi embora e a mãe disse ao filho, contrariada, que ele tinha que aprender logo todos os afazeres masculinos da casa.
Batalha- conto narrado em primeira pessoa por uma doméstica que tinha muito medo de engravidar para não perder o emprego. Acabou sendo enrolada por um rapaz que lhe prometeu o mundo, arrotou riquezas mas era na verdade um funcionário de mercadinho. Ele já havia enganado várias outras, assim como ela, que engravidou e não teve apoio dele para a gravidez. Ela, se quisesse, que tirasse a criança. Ela até tentou, mas não conseguiu, passou mal, correu risco. A patroa descobriu e até foi complacente. Mas como reagiria o patrão e a própria família? Por isso, ainda fazia de tudo para esconder. É um texto que relata com muita crueza o que passam várias mulheres que acabam desassistidas pelos seus companheiros na hora da gravidez.
Figurinhas difíceis- conto narrado em primeira pessoa. O narrador é um garoto que, com seus amigos, descobre um outro universo, a atração pelas mulheres. Vão constantemente ao cinema para assistir aos filmes de Maria Antonieta Pons. Apesar do roteiro fraco, ela tinha um belo corpo e dançava uma rumba que deixava todo mundo alegre. Provocava excitações no corpo deles que simplesmente desconheciam. Colecionavam o álbum de figurinhas dela, e a figurinha da bela atriz era artigo de luxo. Um dia, não mais que de repente, ela perdeu o holofote para Sarita Montiel. Os filmes desta nova eram sem graça, ela também não dançava e nem usava aquelas roupa insinuantes que mostravam tudo. Mas fazer o quê? Era a bola da vez agora. As figurinhas da Maria Antonieta Pons passaram a ficar mais comuns e era possível obter várias repetidas. Não merecia algo assim. Não havia mais notícias da atriz que fora tão desejada por eles. Aos poucos, ela foi desaparecendo da mente dos garotos. A atenção deles começava a ser desviada para o que estava mais próximo, ali ao alcance, as menininhas das redondezas. A preocupação deles agora era adulterar a carteirinha para ver Norma Benguell nua, currada por um bando de playboys.
Ananda Daya- conto narrado em terceira pessoa. Seu Matias é o personagem central. Depois da morte da esposa, há alguns anos, ele vive uma vida totalmente solitária. E claro, não gosta nada disso, não suporta mais tal situação. Sentia-se também totalmente sem energia. Achou em um anúncio de jornal ?Ananda Daya, cura prânica?. Uma espécie de tratamento cósmico. Reuniu suas economias e foi buscar o tratamento. Ficou de sunga e Ananda Daya começou o tratamento, uma massagem reconfortante que parecia ressuscitar Seu Matias e o que ele já nem imaginava que poderia reerguer novamente. De repente, não conseguiu mais se segurar. Daya deu um pulinho maroto para não ser respingada. Seu Matias ficou completamente constrangido. Ela o tranquilizou e o mandou tomar banho. Ela entrou, baixou o legging vermelho e sentou no vaso para urinar, como se eles tivessem a maior intimidade. A mijada desinibida de Daya provocou um sentimento estranho em Seu Matias, um princípio de alegria e satisfação. Uma esperança que ainda não sabia definir.
In memorian- conto narrado em terceira pessoa sobre um senhor, que acabou de perder a mulher. Ele parece não ligar muito, começa a fazer tudo o que a finada odiava. A empregada deles começa a pegar no pé dele, arruma a bagunça. Ele pensa em logo demiti-la, quer viver em liberdade, solto como há muito não se sentira. Mas ela vai ficando e se tornando cada vez mais mandona. Quem é ela para querer mandar na vida dele. A empregada opina até sobre a cueca que ele veste. Pede para comprar umas mais modernas. Aos poucos, ele vai se deixando dominar e passa a se sentir atraído. Vai testando aquela mulher e ela também se deixa envolver, até que um dia ele têm uma transa selvagem no quintal do tanque, onde ela lavava as cuecas dele. Pronto, não estava mais livre.
Tadinho do professor Tadeu- conto narrado em terceira pessoa que fala de um professor de matemática meio desajeitado, extremamente tímido e que sofre um certo bullying dos alunos. Mas ele conseguiu pegar a professora de português, uma mulher firme no trato, admirada pelos alunos, um furacão. Passou a ser mais respeitado. Certo dia, em uma aula, falou abertamente sobre assuntos, digamos, íntimos, e deixou todos boquiabertos e interessados no que ele estava falando como nunca antes. Até que os dois professores foram afastados e os alunos passaram a sentir uma imensa saudade deles.
Lofote e sua mãe- conto narrado em terceira pessoa e aborda a história de uma mãe e um filho miseráveis. Eles moram em um poço, em condições degradantes, e saem pelas ruas em busca do necessário para a sobrevivência, passando por alguns apuros, correndo riscos de levar um ?corre? da polícia e etc. São ridicularizados nas ruas. O rapaz é todo desengonçado. A mãe tem certa raiva dele e às vezes sonha que aconteça um acidente qualquer para se livrar do garoto. Certo dia, uma alma caridosa levou Lofote para uma casa de apoio. A mãe deu graças a Deus, mas quando foi visitá-lo, viu que não estava sendo tratado como havia sido prometido. De qualquer forma, era melhor do que estar com ela. Ficou sem canto depois que chegaram umas famílias e a expulsaram do poço. E agora, a companhia dela era uma penca de cachorros que a seguiam enquanto ela carregava uma carroça cheia de latinha de cerveja. Passaram a chamá-la de Maria dos Cachorros.
Nas garras do leão- o conto é narrado em primeira pessoa por um garoto que vive em um casarão com a irmã e a mãe. Ele vai narrando, sob a perspectiva inocente de uma criança, o drama vivido pela mãe, que tinha uma grave doença e sabia não durar muito tempo viva. Ela sofria de fortíssimas dores de cabeça. Acontecia com frequência, quando vinha, se trancava no quarto e ficava lá até passar. Ele e a irmã ficavam ?largados? naquele casarão. Procuravam não bagunçar muito, pois quando ela saía do quarto, sempre vinham as broncas, as cobranças e tudo o mais. Com o passar do tempo, ela saía cada vez menos do quarto. Ficava olhando para eles com aqueles olhos marejados, não falava nada, não se locomovia, parecia que nem sabia se comunicar mais. Estava mais magra e abatida. Enquanto isso, eles iam tocando a vida dentro de casa com brincadeiras e novas descobertas. Tudo aquilo era narrado sob o olhar inocente do garoto, que parecia não compreender plenamente tudo o que estava acontecendo.
Formigas- conto narrado em terceira pessoa. O protagonista é Arilindo, um homem que vive em uma comunidade carente, tem a casa mais ajeitadinha da localidade, mas não deixa de ser humilde. Está acima do peso e enfrenta problemas de saúde, taxas altas de glicemia, colesterol, triglicerídeos, etc. Vive controlando a alimentação e com medo da morte. Nunca se relacionou com ninguém. Ouviu uma poetiza falar na televisão que fez amor consigo mesma, e isso é a melhor coisa. Ninguém pode compreender o sexo do outro se não conhecer a si mesmo. Achou tudo aquilo um absurdo. Nunca fez amor com ele mesmo e com ninguém. Um dia, meio que de saco cheio de tudo, colocou uma carne vermelha bem suculenta para assar na manteiga, às favas com aquela dieta que lhe restringia os prazeres mas não melhorava a saúde. Enquanto assava, lutava com as formigas e baratas que tentavam ganhar terreno. Terminou de preparar a refeição e já estava suado, teria que tomar um banho antes de comer. Foi para o banheiro e iria esfregar bem as suas partes, buscar os prazeres do corpo, depois os prazeres da culinária, não queria nem saber. E as formigas já se aproximavam de volta.
Prima Otília- narrado em primeira pessoa por um garoto que se apaixona pela prima bem mais velha, a Otília. A moça é rica e belíssima, enriqueceu ao casar-se com um cara bem-sucedido e faz visitas constantes aos familiares naquele lugar miserável, carente de tudo. Apesar de rica e muito bonita, Otília fede a mijo. Como causa inveja, claro, esse é um motivo de críticas e comentários dos parentes rabugentos. Ela se confessa com as tias que vem sofrendo de um mal depois da tentativa de gravidez, não consegue segurar a urina. Como naquela localidade não há banheiro, ela foi se limpar e trocar a calça perto de um árvore. O narrador foi espiar e ficou ainda mais apaixonado com tudo o que viu. Teve um peso na consciência e saiu correndo. Quando a prima chegou de volta, pegou o menino no colo, beijou, aquilo sempre lhe provocava as sensações mais deliciosas, e disse que, se pudesse, o levaria para morar com ela. Quem dera se deixassem, pensou, ele ficaria a vida inteira agarrado nela, por ele, entraria dentro daquele corpo e ficaria para sempre, com fedor de mijo e tudo, não se importava.
Dadado- conto narrado em primeira pessoa. Conta uma breve história de um primo distante, o Dadado, que todos os dias, logo cedo, chega com a carne encomendada pela avó do narrador. A velha prepara para os netos comerem no almoço. Um dia, Dadado não chegou com a carne, já passava das dez horas e nada. Foi aquela comoção. A mãe dele chegou chorando, desesperada, acusando a todos porque seu menino desapareceu. Até que Lica, uma moça bem bonita, namoradeira, chegou e falou para não se preocuparem, pois o rapaz tinha era virado homem. A mãe de Dadado a mandou calar a boca senão iria lhe estragar a cara. Havia um boato de que o pai de Dadado a traía com Lica. Por isso, as duas não se bicavam. Do nada, aparece Dadado, todo desconfiado, dizendo que sumiu porque havia sido roubado na feira e estava com medo de apanhar. A mãe lhe deu uma ?baixa? e todos dispersaram. Lica saiu andando sorridente, baixou a alça do sutiã e foi possível ver uma nota em dinheiro pendurada.
Jogos- conto em primeira pessoa sobre duas jovenzinhos que trabalhavam juntos na mercearia dos pais das menina. Eles nem chegaram na adolescência mas já tinham uma forte atração um pelo outro. Era só haver uma oportunidade de ficarem sozinhos que logo acendia o fogo. Um parecia descobrir com o outro aqueles novos prazeres. À tarde, estudavam juntos na mesma sala. Ela era esperta e bastante inteligente, tanto que, na audiência dos professores, tomava conta da sala e tomava a lição dos colegas. Ele não levava o menor jeito para os estudos, tanto que pensava já em abandonar a escola depois do ginásio e ir ajudar os parentes na roça. Ela sempre o escolhia para arguí-lo. Em uma manhã, os dois sozinhos, ela conduziu a mão dele entre suas pernas. Ele, com medo de ser flagrado, tirou repentinamente. Quase que os pais dela pegavam a cena. De tarde, na escola, ela fez questão de fazer uma pergunta bem difícil sobre matemática para ele, que claro, não conseguiu responder. A moça não pensou duas vezes. Pegou a palmatória e desceu sem pena na mão dele.
Triste paixão no morro do avião- conto narrado em terceira pessoa e que traz a história de um casal de amantes. Ela passou dos 50, ele tem 18 e é amigo dos três filhos dela. Engataram esse romance quando ele tinha uns treze anos, mas já com corpo feito, de homem. Em todos aqueles anos conseguiram manter os encontros em absoluto sigilo. Até que um dia ela demorou a voltar para casa. Os filhos estranharam, acharam no início que ela havia ido visitar uma cliente de costura, mas já estava demorando demais, passaram-se dois dias e nada. Procuraram a polícia, que não demorou para descobrir que ela estava morta e enterrada nas proximidades, também não demorou para chegar ao autor do crime, ele mesmo, o jovem amante. Por que fez aquilo? Ela queria revelar o romance e ele não poderia permitir que os amigos descobrissem, o que iriam achar se soubessem que ele se relacionava com a mãe deles? Iria pegar muito mal.
Exames de rotina- conto que traz a rudeza de um marido sertanejo que passa a desprezar e a destratar a esposa que volta do hospital paralítica por conta de complicações ocasionará por uma doença aparentemente ginecológica. Ela estava sangrando há dias e precisou ir ao hospital para ser internada. A ambulância foi buscá-la. O marido vai usando palavras duras para relatar aquela situação, falando que o médico que ficasse com aquela inválida, já que soube se aproveitar, apalpando-a na hora dos exames, agora que está fria da cintura para baixo vem devolver? Ele que fique com ela agora, que ele precisa ir para a roça cuidar da vida.
Lu de seu Messias- Lu, quando se casou com Messias, era magrinha, o que não era muito do agrado do marido, que a queria um pouco mais fornida. A cada filho que pariu, ela ia engordando um bocado. Depois do terceiro, estava muito corda, recheada mesmo. Para ele aquilo já era demais. Para que aquele monte de gordura, suava feito uma bica. Nem queria trepar daquele jeito. Perdeu totalmente a atração pela mulher. Evitava o quanto podia. Aliás, ele parecia que não tinha mais gosto para a coisa. Uma colega de trabalho bem atraente estava dando bola para ele. No princípio, não queria, mas acabou topando mas falhou na hora. Estava desconsolado, até trocou de emprego. Certo dia, a esposa, com todas aquelas carnes, montou nele e sentiu aqueles peitos grandes e confortáveis. Viveu uma ótima experiência, uma descoberta muito prazerosa. Foi a tal da ?espanhola?, que fez com que Messias não quisesse outra coisa na vida do que a sua Lu e toda a sua fartura de carnes.
Dona Dadinha- conto super engraçado sobre uma senhora absolutamente viciada em filme pornô. Desde jovem frequentava e era conhecida na sessão matinê de filmes do gênero no cinema. Sabia contar em detalhes o que os atores faziam, conhecia-os pelo nome. O cinema fechou, um despropósito, mas logo veio, felizmente, o videocassete e ela voltou a assistir aos filmes. Os filhos sempre a reprochavam, como pode uma senhora já com netos, até bisnetos, ficar vendo aquelas pornografias. Dona Dadinha nem ligava, só lamentava não ter mais presente na terra o seu marido, que se foi cedo. Ele não sabia da missa a metade.
Inveja- é o conto mais curto do livro. Tem meia página. Fala de uma tradição de que, quem primeiro segurasse a vela na mãozinha de um bebê que acabava de morrer teria felicidade e seria protegido o resto da vida. O filhinho de dona Zeli estava morrendo, foi aquela correria para todos que queriam pegar primeiro o último suspiro. O narrador correu mas quando chegou, o filho da dona Isabel estava todo vitorioso, segurando aqueles dedinhos ainda rosados. A narradora ficou com raiva de Lúcio, o anjo se foi e Lúcio guardou a vela no bolso, o maior acinte.
Novidades- tudo ali era novo para aquele menino. Um local todo branco, com um cheiro forte é desconhecido, pessoas vestidas de branco. Ele entrou na sala e se deparou com aquela cadeira enorme, com o homen vestido de branco que o mandou sentar. Mandou-o abrir a boca, fez uma cara da qual ele não gostou muito, mas tudo ali era novidade. O homem de branco colocou uma luz na cara dele e começou a mexer nos dentes dele. A mãe chamava de panelas os esburacados. E na boca do garoto, quase todos eram, doíam muito. O homem de branco foi tirando um, depois outro, e depois disse que na semana que vem tiraria mais. Ele sentia o rosto duas vezes maior do que o normal. Mas na verdade nem estava, a boca é que estava mais fazia, aquela sim, a maior novidade de todas.
As meninas do coronel- no dia da visita do coronel ao castelo de Dafé era aquele alvoroço. As meninas já se arrumavam desde cedo. Umas diziam que homem melhor não tinha. Outras, apenas calavam, mas nenhuma tinha coragem de falar mal. Ficavam ansiosas por lhe fazer todas as vontades, tinham medo de não corresponder, pois Dafé poderia abandoná-las no mundo logo depois. Ele era viúvo, sempre escolhia a mais novinha, com cara de anjo. Dafé ia lhes apresentar as novidades e ele pegava a do agrado, sempre o anjinho. No quarto, fazia com a navalha o carocinho de romã, pois pentelhuda era só a viúva, que só lhe deu filhos homens. Daí em diante, o narrador vai detalhando os gostos às vezes até estranhos do coronel. E cada passo daquele processo era uma espécie de ritual, que todas as meninas e a própria Dafé sabiam de cor como funcionava.