Lucas 17/06/2022
A relação entre poder e solidão e os estilhaços de uma explosão de realismo mágico
Quando se fala de Gabriel García Márquez (o "Gabo", 1927-2014), as expectativas são sempre altas. Seu legado literário dentro do realismo mágico é sólido e perene de tal forma que é inevitável que o nome do escritor colombiano, quando colocado na capa de algum livro, chame muito mais a atenção que a sua sinopse ou o rótulo de vencedor do Nobel de Literatura, que o acompanha desde 1982.
Este sentimento de expectativa provavelmente deve ter sido vivido pela primeira vez pela sua legião de leitores apaixonados por sua escrita em 1975, quando, depois de ter lançado a sua obra-prima Cem Anos de Solidão (1967), a qual o fez ficar mundialmente conhecido nas Letras, Gabo publicou o seu primeiro romance desde então: O Outono do Patriarca. Nele, Gabriel García Márquez, numa síntese estrutural da obra, levou aos extremos as características marcantes e por vezes indescritíveis do seu realismo mágico, apresentadas ao mundo nos Aurelianos e José Arcádios da obra antecessora.
Deste modo, o leitor terá diante de si uma versão "radicalizado" dos encantos mágicos oriundos de um realismo místico, que corre pelas páginas como um "rio de águas diáfanas", a qual nasce na cabeça absolutamente criativa e ativa de seu idealizador. O Outono do Patriarca se molda num emaranhado de ações e descrições atropeladas, que testam a paciência do leitor em vários momentos, revoltam em outros e, acreditem, encantam em todos. Nesse ponto, é importante destacar ao leitor mais desavisado que o encanto é mais uma "admiração", um deslumbramento literário que muitos leitores de Gabo desenvolvem com o seu estilo ora florido, ora cru, ora intrépido, ora direto, mas sempre ativo.
O Outono do Patriarca enreda-se por um país imaginário e inominável, provavelmente do Caribe, que está nas mãos de um déspota (o tal patriarca, apesar dessa alcunha aparecer pouquíssimas vezes na narrativa), também sem nome, "com idade indefinida entre 107 e 232 anos" e a qual comanda o seu país com vieses ditatoriais por um tempo indefinido. Os absurdos, tão significativos do realismo mágico, aqui adquirem tons familiares à América Latina: as autocracias, os fuzilamentos, assassinatos e massacres para manutenção da ordem, a influência de potências estrangeiras (notadamente os EUA e a Reino Unido), as misérias, o abandono, a ignorância... É tudo como um típico país da América Central ou da América do Sul, já que a imensa maioria deles já passou ou passa por experiências similares.
Deriva disso o entendimento de que O Outono do Patriarca foi idealizado como um relato sobre a concentração de alto poder sobre um único indivíduo e suas consequências sobre ele como detentor desse poder. Vejo, desse modo, que o patriarca protagonista foi alguém eternamente em busca do amor, antes do poder em si ou da aprovação de outras pessoas. Prova disso é a sua mãe, Bendición Alvarado, exaustivamente citada na narrativa, cujo amor (de mãe nesse caso) foi o único que o general recebeu, apesar de suas glórias, paixões, conquistas políticas e poderes que lhe foram outorgados. Tal dicotomia (o poder excessivo e o amor em falta) cria as condições para o desabrochar da solidão, tema este que Gabo dominava muito bem, já que praticamente todos os seus livros a trazem de forma direta ou nas entrelinhas.
Solidão e poder são vias inexoravelmente contrárias: quanto mais poder se tem, mais sozinho se fica. Estar sozinho aqui não é fisicamente falando, já que o patriarca por motivos óbvios vivia cercado por serviçais, ministros, embaixadores e por aí vai. A solidão nesse caso tem a ver com o seu viés mais cruel, que a sensação de se estar sozinho por dentro, um sentimento que vem das entranhas do indivíduo e que poder nenhum do mundo é capaz de compensar. Ela turva a razão, parece invencível ao tempo, torna tangível medos ocultos e, no caso do patriarca, acaba por conduzir também ao viés supracitado e mais explícito de solidão pessoal e física. Tudo isso não deve ser um apaziguador da personalidade ditatorial de um déspota: é apenas um traço do seu destino, que na verdade é compartilhado por todos (a solidão na hora da morte, por exemplo, que até mesmo Jesus Cristo sentiu).
Tirando a solidão e o poder, sobram as caricaturas de Gabo, seus absurdos simbólicos, que aqui são muitos. O apego à figura das vacas, por exemplo, que viviam livres e soltas no palácio presidencial, uma anomalia bem íntima que o patriarca possuía em seu corpo, a lendária venda do mar para o pagamento da dívida externa (mencionada na sinopse da edição da Editora Record), a misteriosa prisão de duas mil crianças, aparelhos de repressão peculiares montados debaixo do nariz do patriarca, o rigoroso alienamento do general em seus últimos anos, entre outras inúmeras situações que enchem as páginas d'O Outono do Patriarca com aqueles absurdos que os amantes do realismo mágico tão bem imaginam. Aos que não o conhecem, é importante alertar que estas "figuras exorbitantes de linguagem" nem sempre passam uma mensagem positiva ou recomendável e aqui senti um pouco mais de decrepitude e putrefações que em outras obras importantes do autor.
No supramencionado processo de "radicalização" do realismo mágico, a narrativa d'O Outono do Patriarca merece alguns comentários mais específicos. O principal elemento diferenciador da obra dentro de todo o cânone das obras de Gabo (pelo menos as que eu li) é a sua estrutura desenfreada: o livro possui 271 páginas na edição da Record (com tradução de Remy Gorga Filho), seis capítulos e seis parágrafos. Isso mesmo, cada parágrafo corresponde a um capítulo, apesar de, visualmente falando eles não parecerem parágrafos propriamente ditos. Desse modo, é um texto rebuscado, com frases intermináveis (não me recordo de ter visto mais do que um ponto final, o último, no último capítulo, por exemplo), informações e pontos de vista misturados (o texto é escrito em primeira pessoa por diversos narradores), sem diálogos, tudo "jogado" na cara do leitor, que se verá muitas vezes sôfrego diante de tantas descrições que desrespeitam espaço e qualquer cronologia. Se estes não são elementos que desabonam a obra, eles precisam ser ressaltados para que o leitor saiba onde está se metendo: em mim, eles criaram um sentido de "urgência" para terminar o livro, mesmo que tropeçando e voltando diversas vezes na leitura. Talvez tenha sido uma artimanha de Gabo, derivada do seu gênio criativo inigualável, que acabou sendo uma exacerbação contínua daquilo que o seu estilo possui de melhor. Mas, particularmente eu recomendo que o leitor que nunca leu nada do realismo mágico ou do autor não comece por aqui. A experiência de leitura nesse caso não deverá ser tão positiva.
O Outono do Patriarca é um livro que pode ser visto sobre um sentido prático e outro literário. No primeiro, são impactantes as familiaridades expostas com relação às ditaduras latino-americanas tão presentes no século XX, seja no âmbito de exercício de poder através da repressão ou nos dilemas individuais de quem detém esse poder. No sentido literário, corresponde à explosão do realismo mágico, em todas as suas particularidades positivas e repulsivas. Em ambos os sentidos, Gabriel García Márquez deixa o seu traço criativo ainda mais solidificado, mostrando que o autor de Cem Anos de Solidão não era apenas o autor de Cem Anos de Solidão.