Suruassossaurus 07/01/2024
Sobre o detetive mestre da dedução e seu fiel companheiro
Tenho muito a dizer após ler, se contei direito, 48 contos do detetive. Segundo palavras do próprio Watson, a carreira de Sherlock Holmes durou 23 anos, estando o médico com ele nos últimos 17. Após acompanhar tantos casos é impossível criar uma certa familiaridade com os personagens confortável com seus personagens principais. A sensação de ter acompanhado uma longa parte da vida de alguém parece ser reforçada com a forma como essas histórias foram publicadas. Com certeza o espaço entre anos entre uma obra em outra, intercalada em alguns pontos com os romances, trazem um tipo de amadurecimento ao enredo.
Sherlock Holmes definitivamente não é uma pessoa fácil de se conviver. Dado a realizar experimentos que muitas vezes causam manchas, são malcheirosos ou produzem muita fumaça, gosta de praticar pontaria com revólver dentro do apartamento e de utilizar crianças de rua como espiões, estes invadindo em massa o apartamento sem o menor aviso para informar suas descobertas, ou mesmo criminosos arrependidos que buscam algum tipo de perdão servindo como informantes ao detetive. Quando depara-se com um problema mental para o qual não encontra caminho pode passar horas tocando violino sem se importar se é dia ou no meio da madrugada. Sua ocupação faz com que todo tipo de pessoa o visite. Somando isso ao seu costume de solicitar refeições do nada surpreende até o próprio Watson como a senhoria do imóvel, Sra. Hudson, é permissiva com tanta excentricidade. Em diversas ocasiões o detetive afirma que faz o que faz por amor à técnica, não por dinheiro. Mais curioso ainda é quando faz jus ao fato de que ele não é um agente oficial da Lei e, por isso, não é obrigado a agir da maneira cega quanto à pessoa que cometeu o crime e seus motivos. Um mestre da atuação que tem, entre vários recursos, um arsenal de maquiagens e disfarces que o permitem andar por Londres sem ser reconhecido. Uma vida dedicada à sua arte tem efeitos influenciam diretamente seu humor no dia a dia: quando ocupado com alguma investigação intrigante é capaz de passar dias acordado e ter picos de energia que o permitem correr grandes distâncias e lutar mesmo não costumando praticar nenhum exercício. Entretanto o tédio ocasionado pela falta de estímulo mental é devastador, sendo possível passar dias deitado sem comer, fumando de maneira imparável ou, para a preocupação de Watson mais de uma vez, utilizando morfina e cocaína. Felizmente em diversas ocasiões o detetive foca seus esforços em episódios de hiper foco em assuntos diversos (ainda que sempre tendo utilidade para a investigação criminal), rendendo, por exemplo, monografias sobre os tipos de cinzas produzida por algumas dezenas de marcas de charutos e como sua análise correta pode ser fundamental para a resolução de um crime.
Poucas pessoas saberiam sobre o detetive e seus casos se não fosse o Dr. John H. Watson. Tratando-se de um médico militar que se vê afastado da profissão após ter sido ferido em um período servindo no Afeganistão, aceita dividir um apartamento com o detetive pois sua pensão é limitada. Acompanhando-o inicialmente pela utilidade de seus conhecimentos médicos logo torna-se um parceiro quase que inseparável do detetive, nutrindo uma admiração e uma amizade que muitas vezes lhe machuca quando o reconhecimento ou o desdém de suas ideias pelo colega não ocorrem. Contudo é inegável que sua presença passa a ser confortável e até desejada por Holmes, que não deixa de alfinetá-lo nas ocasiões em que Watson, devido ao casamento ou à profissão que volta a exercer após algum tempo, o impedem de participar das investigações. Seu desejo, muitas vezes desencorajado pelo próprio Holmes, de fazê-lo ter o reconhecimento que merece o tornou o seu cronista. Isso tem um efeito curioso que, talvez, eu possa dizer que quebra a quarta parede? Veja, as narrativas de Watson são o meio pelo qual tanto as pessoas viventes nesse universo literário quanto para o leitor do mundo conhecerem o trabalho do detetive. Não é de admirar que muitas pessoas tenham acreditado que o detetive se tratava de alguém real na época de sua publicação. Talvez por um complexo de inferioridade que o faz não se sentir alguém mais útil o médico é sempre muito solícito aos pedidos do amigo. Não é incomum que Sherlock o envie como emissário, distração ou mesmo representante em casos que ele não quer ou não pode se ocupar no momento. Watson um companheiro fiel sempre disposto a levar seu velho revólver nas investigações e a correr o risco de punições legais ao realizar arrombamentos e invasões sem permissão das forças policiais. Sua convivência com o detetive é tamanha que se acostuma ao seu modo de agir e acaba se adaptando à rotina, sentindo-se magoado e inútil quando não pode participar em certos momentos por escolha de Holmes. Não é possível deixar de gostar do bom doutor Watson e fiquei realmente feliz com suas pequenas conquistas que ocorrem entre uma obra e outra. Sua presença torna-se tão vital para Holmes que ele próprio registra duas aventuras nas quais Watson não pôde participar e o cita muitas vezes, normalmente elogiando-o por sua escrita agradar tanto o público e logo após o criticando por tornar o relato sensacionalista e pouco técnico. Considero-o ainda alguém com a cabeça à frente de seu tempo, considerando a época, tendo mostrado incômodo com questões com preconceito racial e machismo em mais de uma ocasião.
Quase tão presentes quanto o próprio Watson nas investigações são as forças da lei inglesas, majoritariamente representadas por inspetores de polícia e da Scotland Yard. Deles o que detém o maior número de aparições é o Lestrade, descrito como tendo feições de fuinha. Ainda posso citar Gregson, que possui uma rivalidade com Lestrade, o jovem Hopkins, MacDonald, Baynes, Bradstreet, Athelney Jones, enfim, todos em algum momento servindo ou servindo-se dos serviços do detetive. Com a maioria deles há um certo ressentimento onde, mesmo sendo sua ajuda primordial para a resolução dos casos, torcem para que a hipótese de Holmes seja equivocada apenas para vê-lo errar alguma vez. Tal atitude para Holmes é quase sempre de divertimento, garantindo ainda o reconhecimento dos sucessos aos detetives por não estar interessado na fama. Em contrapartida a maioria deles atende aos pedidos de Holmes e providenciam escoltas armadas para ajudar a deter criminosos, mandatos de busca em imóveis e auxiliam em vigílias ainda que não tenham noção do que está havendo.
Devido a quantidade de casos é impossível falar de todos, mas há muito o que se falar deles ainda que de maneira generalizada. Foi uma surpresa curiosa constatar que muitos casos não tratem de assassinatos e roubos, alguns nem mesmo crimes, mas que cujo mistério atiça nossa curiosidade tanto quanto a do detetive. A clientela é diversa tanto em classe social quanto em origens. Desde trabalhadores pobres até o alto parlamento inglês e mesmo nobreza estrangeira, muitos vindo após ter ouvido ou lido falar dele por meio dos relatos de Watson. Em alguns casos o destino dos envolvidos está nas mãos de Holmes, que atua como juiz e, permitindo-se ser parcial, leva em conta as circunstâncias por trás do crime cometido e não é comum que permita o culpado a partir livre, geralmente com alguma advertência de que não deve cometer mais nenhum outro delito. Tais variações tiram a monotonia que os casos poderiam ter. Esta leitura, levando em conta meu emprego e a faculdade, levou muito tempo e tenho diverso outros livros que estão na minha lista e que quero ler, porém sempre que acabava um conto eu olhava o próximo e não conseguia nem fazer uma pausa na leitura. Ficava empolgado pela história do próximo cliente, principalmente mais no final do livro onde em muitos casos é mencionada a iminência da Grande Guerra, havendo casos nos quais envolviam espionagem internacional e o interesse do governo inglês. Um outro detalhe que reparei conforme a leitura avança é o próprio progresso industrial e tecnológico sendo mencionado. Nos primeiros contos vemos perseguições de carruagens, análise de locais de crime à luz de lampião e o envio de mensagens por telegrama ou por mensageiros contratados na hora. No último terço do livro luz elétrica começa a ser presente e, mais para frente, o uso de automóveis e telefones passam a fazer presença, dando mais um reflexo de como as obras baseadas em um único personagem que são escritas através de décadas trazem um pouco da vida do período em que estavam sendo criadas. Por fim, é muito legal ver aspectos da vida cotidiana inglesa da época.
Fiz o meu melhor nesta resenha para passar o prazer que senti com essas aventuras sem dar nenhum spoiler significativo. Em algum momento, o qual não sei identificar, o que passou a sustentar o interesse nas histórias deixou de ser os mistérios e passou a ser os personagens principais de modo que penso neles com carinho e me sinto satisfeito ao saber como a aposentadoria do detetive ocorreu. Alguns livros não são clássicos por acaso e consigo entender o que fez Sherlock Holmes tornar-se maior que seu autor, Sir Arthur Conan Doyle, embora não seja capaz de explicar claramente. É algo que apenas acompanhando a carreira do detetive e de seu fiel companheiro passamos a compreender realmente.