Natalia 13/02/2020
Abolicionismo?
As Vítimas Algozes é um clássico da literatura brasileira... mas deveria ser?
O livro advoga pela libertação dos escravos no Brasil, isso não se pode negar; porém, não é preciso avançar muitas páginas para perceber em que base essa defesa ocorre. Joaquim Manuel de Macedo convence as elites do país a não ter escravos em suas casas com o argumento de que o negro é quem traz a imoralidade para o seio familiar. Ele culpa a escravidão: é ela a responsável por corromper o espírito do "crioulo" (termo insistentemente utilizado por ele durante todo o texto) e, assim, o tornar vil, rancoroso, incapaz de amar, depravado e dado a vícios.
Os negros que intitulam os contos são pintados como vilões desde as primeiras descrições. Daí, saem estórias delirantes, dotadas de imensa dramaticidade, que colocam os brancos como vítimas, para, assim, poder designar os escravos como "algozes". Foi assim que o autor buscou convencer os seus semelhantes de que a escravidão era um câncer no país -- gangrenava os valores intrínsecos a elite.
Certamente, convenceu muitos. No recorte temporal no qual foi escrito, talvez tenha sido extremamente relevante. Não posso, entretanto, aplaudir e nem recomendar um texto tão recheado de racismo. A cada descrição é perceptível a visão de superioridade da raça branca que o autor tem: a beleza e a inocência são brancas; a feiura e a vulgaridade são pretas. A leitura é de revirar o estômago. Conto a conto, linha por linha, o racismo é despejado, de sutilezas ao mais descarado escancaramento.
Obviamente, eu não poderia esperar outra coisa. É um homem branco escrevendo sobre escravidão em 1869. Me pergunto, porém, como o livro é deglutido por quem o lê em 2020. Por pessoas brancas leigas ou mal intencionadas, com todo o racismo intrínseco à raça opressora, a interpretação será falha. Será -- no futuro do presente do indicativo, como uma certeza. Talvez, os impropérios mais nítidos possam ser identificados e repudiados, mas as sutilezas serão plantadas em mentes ignorantes e gerarão discursos podres.
O valor social desse livro ficou preso em 1800 e bolinha. Hoje, como leitura por lazer, é desserviço. Sua relevância está em ser um objeto de pesquisa para as ciências humanas. Vale ressaltar, contudo, que ler As Vítimas Algozes sem localizá-lo na história, na literatura e na antropologia é perigoso.
Aconselho: é necessário analisar o discurso a cada passo durante a leitura; ainda mais imperiosa é a autoavaliação. Desconfie de si mesmo se entra em concordância com algo nesse livro. Olhe para dentro e reflita. Defina especificamente com o que você corrobora. Beba de referências negras e tente compreender a afirmação que está dentro de você -- e, se preciso for, lute contra ela.