Katia Rodrigues 11/09/2022
Sobre o amor...
"Tudo começa nesse lugarzinho dolorido, chamado ?eu?. Faz muitos anos que me pergunto: ?O que é o ?eu??? Quando eu tinha 6 anos de idade, eu tinha ideias de criança na cabeça e falava ?eu?. Cresci, mudei minhas ideias, fiquei diferente. Mas continuei a falar ?eu?. Um outro ?eu?? Não.
O mesmo ?eu?. Cresci mais, estudei na universidade, li muitos livros, pensei ideias que nunca pensara. Meu mundo ficou outro. Mas continuei a falar ?eu?, o mesmo ?eu? que eu falava quando menino. Agora, velho, continuo a falar ?eu?, e, embora quase nada tenha restado do que eu pensei no passado, continuo a ser o mesmo ?eu?. Conclui que o ?eu? é um bolso que o corpo carrega. Bolso é um espaço vazio. Quando menino eu punha piões, bolas de gude, estilingues e balas no meu bolso. À medida que fui crescendo fui tirando uns objetos do meu bolso e colocando outros. Mudaram os objetos. O bolso continua o mesmo?
Houve uma coisa dentro do meu bolso que não mudou. Não é uma ideia. É uma aflição, uma pergunta. Eu era ainda menino quando a aflição apareceu. Percebi que a vida está cheia de perdas. Morreu o cachorro, morreu o passarinho, cortaram a mangueira onde estava o balanço, morreu a mãe do meu amigo (ele ficou sozinho?), a mãe da gente vai morrer, os cabelos dela estão ficando brancos? E a gente percebe que, no fim, o bolso vai se rasgar e tudo que estava guardado dentro dele vai se perder. Esse rasgo no bolso é a morte. No final, nós mesmos iremos morrer? Esses não são pensamentos de gente velha. Não precisam ser ensinados. Já nascem conosco. Minha filha tinha 2 anos quando me acordou, às 6 horas da manhã, para me perguntar: ?Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?? Tudo o que a gente ama vai escorrer pelo buraco do bolso. Aí bate a tristeza. Todos nós somos, metafisicamente, tristes. Esse é o nosso pecado original.
Acontece que nesse bolso mora uma outra coisa, uma chama que queima sem parar. Como ?um círio numa catedral em ruínas?, disse o Vinícius. O nome dessa chama é ?amor?. E o amor não aceita a perda das coisas amadas. Tudo que é amado, o coração quer que seja eterno. E a gente quer, então, acreditar que de alguma forma as coisas amadas não estão perdidas. Estão só guardadas. Até Nietzsche, que disse que o velho Deus tinha morrido, alimentava a louca ideia de que a vida é uma ciranda, e que tudo o que se perdeu haverá de voltar. Como na sonata de Beethoven, ?O Adeus?, 1a parte: O Adeus. 2a parte: A ausência. 3a parte: O Retorno? ?Com Deus existindo tudo dá esperança?? Deus é a esperança que o amor inventa para não perder a alegria? Ideia louca? Pode ser. Só sei que cuido bem da minha chama para que a catedral arruinada não fique na escuridão."