Antologia Poética

Antologia Poética Murilo Mendes




Resenhas - Antologia Poética


2 encontrados | exibindo 1 a 2


Arsenio Meira 08/10/2014

O Poeta em Chamas

Sobre Murilo Mendes, é comum ouvir ou ler: "é um poeta esquecido, sem a mesma atenção dos poetas eleitos pelo grande público, pela crítica, e etc etc." A carga de injustiça detectada por esse (quase) lugar-comum é dolorosa. Talvez, essa releitura dos seus melhores poemas, mediante seleção graduada e apurada, com ensaio certeiro sobre a obra muriliana mitiguem essa pecha de poeta hermético. A edição da Cosac Naify faria Murilo dar cambalhotas de alegria ou plantar bananeira em pleno centro de Belo Horizonte... (ele agiria assim, a julgar pelo testemunho dos seus colegas de geração, ou dos seus conterrâneos.) João Cabral, certo dia, escreveu sobre Murilo: "Sua poesia sempre me foi mestra, pela plasticidade e novidade da imagem. Sobretudo foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo. É, em minha vida um poeta definitivo." O homem, portanto, é titular absoluto entre os grandes poetas do nosso modernismo. João Cabral e Vinicius de Moraes, por exemplo, passaram a vida inteira reconhecendo a força do seu lirismo. Murilo Monteiro Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1901. Partiu em 1975, em Lisboa. No dia 13 de agosto.

Um poeta fascinante, à primeira vista pode parecer um poeta difícil. Mas não é. É que sua liberdade criadora nunca foi capaz de domar o seu feroz lirismo, de onde que se percebe em Murilo uma poesia instigante e perturbadora. Que irrigou em vários caminhos sementes da mais pura poesia. Do poema-piada aos experimentos dos seus grafitos. A Canção do Exílio, uma sátira sua ao clássico poema de Gonçalves Dias, por exemplo, pertence ao primeiro momento dele como poeta; o modernismo ainda em chamas, o poema piada (onde Oswald mandava tão bem) em voga; o poeta não se esquivou ao movimento modernista, ainda que tenha escrito que não participaria de escola alguma, ao menos fisicamente, na linha de frente, pois não seria um numeral para premiar a cabeça de bagre de um algum crítico desavisado. Mas era uma época de resistência para eles, e não é fácil estourar uma revolução. Foi justamente isso o que ele, Drummond, Mário de Andrade, Bandeira, Mennoti Del Picchia, Cassiano Ricardo e o próprio Oswald (dentre outros) fizeram. Não é fácil lutar contra costumes já sedimentados (o parnasianismo, a literatura beletrista e etc). Drummond, ao escrever o Poema da Pedra em 1928, provocou uma confusão dos diabos. Foi taxado de débil mental e etc. Oswald não perdoava ninguém, e em contrapartida teve papel também decisivo, e no final das contas quase entra para o limbo, mas isso já são outros quinhentos.

Mário de Andrade e Manuel Bandeira como verdadeiros desbravadores ou pioneiros - deram rumo ao século XX em nossa vida literária. Murilo, após esse primeiro momento de afirmação transformou-se no poeta definitivo, tão bem descrito por João Cabral, Cabral que foi um dos principais legatários do próprio Murilo e de Carlos Drummond de Andrade. Pelos idos dos nãos 30, Murilo virou um católico militante, ardente. Pelas mãos de Ismael Nery e Jorge de Lima, toda culpa jamais seria perdoada. Preceitos de uma quadra de sua vida em que a solidão era companheira. A conversão não o tornou mais otimista, nem lhe suprimiu a angústia típica daqueles que sentem tão a fundo os dissabores da humanidade, que chegam a escrever, como Murilo escreveu, este sintético e impactante poema (infelizmente, atualíssimo):

"A TENTAÇÃO

Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo
Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz.

Murilo era um poeta religioso, um espírito metafísico, mas nunca dispensava o senso de humor. Um poeta é capaz desta proeza: de ser dramático sem deixar de achar graça em tudo. Autor de uma História do Brasil, Murilo foi também um profeta. E um profeta bem-humorado, como está evidente nos versos brincalhões que escreveu a propósito dos fatos da nossa história, tratada quase sempre com excesso de retórica e escassez de documentos e de pesquisa. Publicada em 1932, numa edição modesta, a História do Brasil tem, por exemplo, um Hino do Deputado, que começa assim: "Chora, meu filho, chora./ quem não chora não mama,/ Quem não mama fica fraco." E por aí segue o poema/chiste.

Pode haver coisa mais atual? Murilo tinha o gosto do superlativo. Fico imaginando onde é que o poeta iria hoje buscar superlativos superlativíssimos para falar do Brasil deste ano da graça de 2014. De lá para cá, mais do que antiquíssima, a corrupção se tornou atualíssima e obsessão nacional. Com p ou sem p, antiquíssima, a corrupção sempre existiu. Lá está no Gênesis: assim que os homens começaram a famosa, multiplicação, o Senhor logo viu que a maldade deles era grande. Ferido de íntima dor, arrependeu-se de ter criado o homem. Mas eu falava sobre o poeta. Não esqueçamos que Murilo Mendes, por exemplo, foi um dos poetas mais latejantes, honestos e inventivos do nosso modernismo. Ele levava a ferro e fogo o lema de Pound: é preciso inovar sempre. Acho até que ele exagerou um pouco, mas o leitor poderá ler em sua volumosa obra poética que ele travou uma luta íntima para transformar-se. Inovar-se sem ferir a própria essência. Como os já citados grafitos, por exemplo, ele conseguiu, penso eu. Tenho a opinião que Murilo não caiu na esparrela da infertilidade, abstracionismo que obscurece muitos escritores, que correm mundo afora. A destreza verbal de Murilo é acachapante. Por muitos anos, li Murilo em Pé, deitado, no táxi, nas pausas das lides forenses. Esse poema inovador, com neologismos bem a calhar, que não distanciam o poema do lirismo que o tema reclama: a saudade do pai, o reconhecimento do amor paterno.

"Grafito na pedra de meu pai

Teu filho pródigo
polêmico
girovago
Anárquico
alicaído
Insoferente do Século

Acolhes preparando
Perdão vitualha serenim.
...
Tu foste
Casa feita/ paz/ ternura
Aberta para o mundo.
Santo-e-senha distribuías
A pobre, amigo, ignoto.
Irônico/ repentista/ malincônico
Eis tua marca maior: hombridade.
[...]
Trabalhador da vida. Homem de aço
& seda, sinto ainda pulsar
teu coração
ecumênico."

A gente ama Murilo Mendes, como ama T.S Eliot. Primeiro pela música, até mesmo antes que se entenda o que ele quer dizer. É uma devoção ou paixão que dura para sempre, porque Murilo, quando relido, é sempre novo, de uma fertilidade verbal e espiritual inesgotáveis.
Ricardo Rocha 27/10/2014minha estante
muito boa leitura - nos dois sentidos




Adriana Scarpin 23/10/2016

Jandira
"O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
o ar inteirinho ficou rodeado de sons
mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
captavam objetos animados, inanimados,
dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E jandira apareceu inteiriça,
de cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
de sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
e eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
não caía nem um fio,
nem ela os aparava.

E sua boca era um disco vermelho
tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
a família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
por causa de Jandira.

E um padre na missa
esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
apareceram ritmos que estavam de reserva,
combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.

E o marido de Jandira
morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
fez um grande esforço para ressucitar:
não se conforma, no quarto escuro onde está,
que Jandira viva sozinha,
que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
e que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
espera que os clarins do juízo final
venham chamar seu corpo,
mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente."
comentários(0)comente



2 encontrados | exibindo 1 a 2


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR