MiCandeloro 27/10/2014
Perfeito! Reflexivo, sarcástico e eletrizante!
Imaginem um mundo pós-apocalíptico assolado por uma epidemia viral ocasionada por uma arma biológica que fugiu do controle. Nem um pouco distante da nossa realidade, certo? Mas e se nesse Mundo Novo, todos os adultos e crianças tivessem morrido, tendo restado apenas os adolescentes, como seria? No mínimo bizarro e duvidoso, afinal, será que um mundo governado por adolescentes descontrolados, com hormônios em combustão e sedentos por violência e futilidade seria bem sucedido?
Como deve ser viver com os dias contados para morrer, sem esperança de um futuro melhor? Seria essa condição libertadora, ou apenas um mau agouro rondando a vida de cada um? Uma coisa é garantida, a perspectiva de vida seria alterada, já que ninguém mais teria que se preocupar com regras. Em contrapartida, a vida fácil, o luxo, o conforto e a tecnologia seriam dizimadas da nossa rotina. Como os adolescentes seriam capazes de sobreviver, coletar mantimentos, se entreter e se relacionar com os demais sem um líder, ou uma legislação, quiçá uma moeda de troca?
Essas são apenas algumas das perguntas suscitadas por Chris Weitz em seu romance de estreia: Mundo Novo, lançado no Brasil pela Editora Seguinte. Desde que vi a capa, foi amor à primeira vista. Gente, ela foi feita com um laranja neon gritante e lindo que não dá para perceber nas imagens da internet, possui uma textura emborrachada, e as ilustrações no estilo grafite estão demais! Outrossim, a premissa criada pelo autor é simplesmente fantástica, e desde o primeiro instante embarquei nessa distopia jovem adulta enfeitiçada por uma escrita hipnotizante, personagens únicos e tremendamente bem construídos e por um cenário digno de filme.
Mundo Novo conta a história dos irmãos Washington e Jefferson, fundadores da Washington Square. Eles tinham orgulho de viverem numa comunidade unida e livre de preconceitos, onde imperava o respeito, o companheirismo e a admiração pelo seu "generalíssimo". A vida até que era boa, se é que isso era possível. Apesar da tensão e da dificuldade gerada pela situação na qual viviam, o grupo conseguia se distrair. Alternavam entre escutarem músicas nos seus iPods constantemente recarregados por um gerador mantido por Crânio, ouvirem histórias inventadas por Jeff, contadas à noite ao redor da fonte, ou assistirem aos filmes projetados num lençol que ficava preso entre duas árvores.
Lá, cada um morava onde bem entendia, geralmente em apartamentos invadidos e redecorados de acordo com o gosto do inquilino. Todos tinham suas tarefas bem divididas e sabiam que se não colaborassem e não dividissem o que tinham uns com os outros eram convidados a se retirar. Donna era a "médica" daquele lugar, e cuidava dos seus "impacientes" com o mínimo de recurso que dispunha. Seu maior desafio era ver seus amigos morrerem sem poder fazer nada.
Certo dia, a dinâmica com a qual eles estavam acostumados mudou. Wash, o generalíssimo, morreu logo depois de completar 18 anos, vítima da doença. Em seu leito de morte, pediu a Jeff e Donna que sempre cuidassem um do outro e que fugissem dali, certo de que o caos seria instaurado. Mas Jeff não recuou, e herdou o posto de chefia do irmão. Porém, nada seria tão simples assim para o caçula, sempre tão inseguro e vulnerável.
Jeff foi convocado para liderar uma missão suicida. Crânio estava convencido de que havia descoberto a causa da doença e de que seria capaz de encontrar a cura. Mas para isso, eles precisariam se aventurar na selva de pedra que havia se tornado Nova York e encontrar um artigo científico que falasse sobre o risco de efeitos Wexelblatt em agentes enilicostônicos.
Se Crânio estava falando a verdade ou apenas delirando, ninguém sabia, mas Jeff não queria arriscar. Se havia a chance de cura e de um futuro, mesmo que incerto, ele aceitaria a chance. Jeff não queria testemunhar mais mortes e, o mais importante, ele não queria morrer, pelo menos não tão cedo. E, para isso, contará com a ajuda dos seus amigos na tentativa de salvar a humanidade e de recomeçar.
Querem saber o que vai acontecer? Então leiam.
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Mundo Novo é narrado em primeira pessoa por Jefferson e Donna, que nos contam a sua história em capítulos intercalados que alternam suas visões de mundo. Por meio dos seus personagens ácidos, sarcásticos e cheios de ideias próprias, Chris tece críticas severas ao nosso sistema político, social e econômico atual, e ao consumismo em demasia, questionando os efeitos nocivos do capitalismo e a decadência da sociedade.
A temática pode parecer clichê, mas Chris consegue se diferenciar dos demais. Primeiro, tive a real impressão de o enredo estar sendo contado por adolescentes, tendo em vista que o autor foi magistral ao incorporar o linguajar, trejeitos, gírias, pensamentos e sentimentos inerentes aos jovens, coisa rara de se ver. Segundo, ele não se limita a nos apresentar os perigos e dificuldades de se viver num mundo pós-apocalíptico, pelo contrário, o foco de Weitz é desenvolver os personagens e apresentar seus dramas, dilemas pessoais e sonhos, e as dificuldades de se seguir em frente, deixando o passado para trás, tornando a trama ainda mais próxima da nossa realidade.
Foi muito fácil me identificar e compreender os protagonistas. A todo o momento, parava para pensar em como reagiria se estivesse na pele deles. Me apaixonei por cada um dos personagens em particular. Jeff era um menino inseguro que rapidamente teve que carregar nas costas uma responsabilidade absurda que o forçou a crescer e a acreditar no seu potencial. A fé que ele tem na humanidade é ao mesmo tempo inspiradora e extenuante, mas seus ideais são tão nobres que me fez ter vontade de lutar ao seu lado. Donna é uma menina completamente marrenta. Criou um escudo tão poderoso em torno de si para conseguir lidar com tantas perdas que esqueceu de que era capaz de ter sentimentos e sentir-se vulnerável.
Crânio é o típico garoto gênio. Não foi à toa o apelido recebido. Ele é daquelas pessoas capazes de transformar qualquer sucata em uma engenhoca mirabolante. Recluso, observador e altamente inteligente, não consegue manter um relacionamento "normal" com os demais, tendo em visto de que leva tudo ao pé da letra e não tem papas na língua para falar o que pensa. Peter é negro e gay, que combinação bombástica nos dias de hoje, hein? Mas para o pessoal da Washington Square, nada disso importa. Dotado de um humor ímpar e de uma certa ousadia desmedida, mantém os humores estáveis e a turma unida. Minifu é peculiar. Uma menina que de doce só tem a aparência, mas que faz de tudo para parecer forte, nem que para isso precise impor a força física. Tudo o que ela quer, no fundo, é pertencer a alguma tribo, se sentir aceita e ser reconhecida.
Aparentemente, todos são adolescentes "normais", se não fosse pelos percalços que precisam passar. Chega a dar dó deles, por não terem ninguém para ajudar e nenhuma esperança a frente. Mundo Novo não é um livro "fofinho". Apesar de ter sido escrito de maneira leve, descontraída e fluida, trata de temas pesados, altamente reflexivos e possui muitassss cenas cruéis e de violência. Bom, acho que não teria como ser diferente, uma vez que todos estão armados até os dentes e os suprimentos estão acabando. Afora que muitos tentam impor seu poderio aos demais grupos, tentando "governar" uma cidade decadente. Portanto, encontramos diversos conflitos, tiroteios, muitas fugas e cenas eletrizantes no livro.
Isso é outra coisa que me chamou atenção. Talvez vocês não se lembrem de Chris Weitz, mas se eu lhes contar que Chris dirigiu Lua Nova, saberão quem ele é? Facilitou um pouco, né? Pois bem, Chris é mais conhecido pelos seus trabalhos como roteirista e diretor de cinema, e cada vez mais tenho visto profissionais desse meio enveredarem pela escrita e se darem muito bem. Não sei explicar direito, mas os últimos livros que li escritos por roteiristas são tão melhor trabalhados. Eles têm o cuidado de serem muito mais específicos com dados trazidos para a história e desenvolvem incrivelmente bem as cenas descritivas e principalmente as de ação, a ponto de realmente nos darem a impressão de estarmos vendo um filme. Ponto para eles, continuem assim.
Quisera eu poder continuar falando de Mundo Novo. Vocês já perceberam que eu amei o livro, certo, e que ele dá muito pano para manga, mas devo parar por aqui que a resenha já ficou enorme. Espero tê-los convencido a dar uma chance a esta maravilhosa e importante obra. Mundo Novo faz parte de uma trilogia e mal posso esperar pela continuação, porque aquele final, meu Deus, é de fazer qualquer queixo cair. Só posso resumir este livro na seguinte definição: PERFEITO!
Resenha originalmente postada em: http://www.recantodami.com/2014/10/resenha-mundo-novo.html