Antonio 15/12/2019
Um E.T. na literatura infanto-juvenil
Imagine se um dia descobrirmos que existe vida inteligente fora da Terra. Isso seria suficiente para abalar o conhecimento humano acumulado por milênios. De que forma viveriam esses seres inteligentes? Seriam mais inteligentes e evoluídos do que nós?
Todas essas questões são bastante filosóficas, e é o ponto de partida de O Amigo de Praga, de Francisco Cabral, Ed. Quatro Cantos. Dênis, um adolescente, está na fazenda do avô, em Goiás, quando vê uma nave espacial cair. Um tripulante humanoide morre na queda, e o outro foge. Começa aí a aventura, e é uma aventura que tem muito a ver com conhecimento.
Rebelde, inteligente, culto, Dênis desafia os militares da Aeronáutica que aparecem ali para recolher a nave. (“'Ninguém tem o direito de nos fazer acreditar ou deixar de acreditar em o que quer que seja. Ninguém pode sonhar por nós”.) E, ao encontrar o E.T. vivo, percebe que sua grande missão é protegê-lo dos militares. Sabe que o único objetivo deles é abafar o caso. Como ele tem um aspecto humano (mas é bem alto, loiro, com a pele rígida e o crânio avantajado), torna-se o “amigo de Praga”, para disfarçar. Só que o E.T. perdeu a memória, e nem sabe dizer de onde veio.
Ele ficará escondido na fazenda do avô, tendo contato apenas com os locais — e os militares continuam investigando. Nas primeiras vezes que come, vomita, pois não está acostumado com a nossa comida. Mas ele tem superpoderes: força e peso muito superiores, é capaz de dar saltos altíssimos, e logo aprende o português. Em seguida, lê todos os livros que encontra para aprender sobre a Terra.
Mesmo antes de recuperar a memória, o que o E.T. manifesta tem muito a ver com ética. Ele tem a preocupação de não fazer mal aos outros, e não usar a força bruta. Começa aí a discussão filosófica que nesse tipo de história é essencial, e que instaura uma visão crítica da nossa própria realidade — essa é a parte mais interessante, que vai agradar aos jovens. É um livro que conversa bem com os adolescentes questionadores e inteligentes.
Existe também o medo. É inegável que, além da curiosidade que o E.T. gera, existe o temor de que outra civilização possa subjugar e escravizar os humanos. O medo do desconhecido. Sendo assim, a reação dos militares é bem verossímil. Mas para Dênis, E.T. é um amigo.
Quando (depois de uma aventura na qual a ética e a (des)honestidade estão em foco, “Será que, a exemplo de cães adestrados, o homem só aprende às cacetadas?”) o E.T. começa a se lembrar do passado, começamos a nos questionar sobre a possibilidade real de haver vida inteligente em outros planetas. Ele dá as explicações sobre essa outra civilização: eles não competem entre si, pois já deixaram para trás os aspectos mais primitivos da existência; por isso, nem mesmo o sexo é necessário, e existem úteros artificiais. Têm apenas a preocupação de sobreviver, pois em seu planeta não há água ou alimento suficientes; por isso, precisam ir a outros sistemas solares. E começaram as viagens espaciais há mil anos: ou seja, são mais avançados mesmo.
E como eles viajam tão longe? Aí há uma ideia interessante: os Túneis Espaciais, feitos de matéria negativa, tal como um buraco negro, capaz de sugar e projetar naves em velocidade superior à da luz. E aí ficamos pensando: como é mesmo que funcionam os buracos negros?
A leitura flui muito bem. São curiosidades que vão sendo satisfeitas. Astronomia, as galáxias distantes, os planetas, tudo bem pesquisado e convincente. No final, existe uma espécie de acordo dos militares brasileiros com os americanos, uma situação que lembra o filme A Forma da Água (em que um monstro brasileiro estava aprisionado).
E tem algo mais: o linguajar caipira (caipirês?) do Juraci. “o muleque tava brincano de corrê com o fio do cumpadre Bastião. Uma hora deu de ir pra bera do corgo e foi lá qui ele arregalô os zóio e quase se borrô todo.” Assim como o E.T., precisamos ser inteligentes para decifrar essa linguagem.
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