SAMUEL 25/02/2015
A beleza por entre as sombras
Anamélia sempre quis fugir.
Assim começa a noveleta recém-lançada pelo prolífico autor Alec Silva e anteriormente disponibilizada para leitura gratuita na plataforma wattpad. Anamélia é uma jovem que sempre quis fugir, conhecer o mundo além dos muros do orfanato que a cercavam. Ansiava visitar os mundos fantásticos sobre os quais lia com sofreguidão, assim como faz qualquer amante de uma boa leitura. Assim como você.
“A alegria daquela promessa era muito radiante. Enchia a alma da jovem órfã de esperança e sonhos sempre presentes. Imagens de banhos de cachoeira com as fadas das águas ou os longos passeios ao lado dos elfos, tantas coisas passavam em sua mente imaginativa. E tudo estava apenas na aceitação das sete tarefas para auxiliar um erudito metamorfoseado em pedra.”
Contudo, como poucos, Anamélia se rendeu ao seu maior desejo e fugiu. Então se inicia sua jornada. A partir daí, entramos em um mundo mágico e sombrio, o autor se utiliza dos elementos e do universo dos contos de fadas para moldar de uma forma distorcida e angustiante seu próprio conto de fadas. Se em outros contos Alec passeou pelo horror com propriedade, aqui ele sobe um degrau. Mas não espere sangue espirrando e o gore que costumamos ver em filmes americanos de quinta categoria, nem espere uma adaptação quase sombria de histórias conhecidas, como Hollywood vem fazendo exaustivamente e com pouca qualidade anos a fio. Aqui, o autor mergulha fundo nos meandros sombrios da psique humana.
“São monstros que se alimentam de cadáveres de todos aqueles que foram santos em vida, pois eles os invejam pelas virtudes que praticavam. Se um vivo os encontra, também o devoram; “
Anamélia parece ser a típica mocinha das histórias infantis, mas foi construída como uma personagem absolutamente humana. A menina do orfanato, com um passado dolorido e um futuro incerto, não representa a figura maniqueísta das histórias clássicas. Anamélia passa por provações, testes que vão obrigá-la a deixar aflorar o melhor e o pior de si.
A escrita do autor já é uma velha conhecida pra mim, e aqui está impecável. Personagens bem descritos, diálogos interessantes, que não cansam, uma mistura do encantado com o macabro em cada palavra, em cada letra, denotando a influência de artistas como Tim Burton e Guillermo Del Toro, mas mantendo uma personalidade singular.
“— Como chego ao jardim da Morte? — perguntou, determinada a continuar.
— Certeza de que quer mesmo prosseguir?
— Sim. Até o fim.
Era o que a pedra precisava ouvir.”
As tarefas atribuídas a Anamélia fazem a trama entrar em sua parte mais sombria. Criaturas horrendas, cenários assustadores, temores que afligem até o mais bravio dos homens. Contudo, o mais terrível em tudo isso é a natureza humana e sua facilidade de se corromper, de negar princípios que pareciam-lhe tão claros em prol da obtenção de uma vantagem individual. O egoísmo, o doce-amargo sabor do egoísmo.
Cada tarefa traz uma nova surpresa, e nos fazem mais próximos da protagonista à medida que os maiores desafios se apresentam. E, próximo do fim, ansiamos por conhecer o desfecho, que vem cortante e sem pudor, surpreendendo, chocando, e tocando o sentimento do leitor com uma sensibilidade cruel e inteligente.
“Enquanto o rubro liquefeito escorria e caía para o interior do recipiente, Anamélia já devaneava com os passeios nos campos coloridos, os banhos nos lagos e rios, as danças ao som de flautas, as refeições nos bosques... Tudo seria diferente.”
Anamélia é uma grande obra. Uma leitura curta, que pode ser consumida em apenas um dia, mas eu recomendo que o faça devagar, pois cada gota desse néctar tem de ser degustada com muita calma, para que os sabores e dissabores não lhe fujam por entre as linhas desse belíssimo texto.