Euflauzino 13/01/2015O que é preciso para se tornar diferente entre os iguais
De cara quis este livro, pela capa também, mas mais ainda pelo fato de me deparar com o autor M.R.Carey, roteirista de X-Men e Hellblazer, ambos quadrinhos que fizeram minha infância e adolescência mais felizes.
Quem nunca leu nada sobre os heróis Wolverine, Tempestade, Colossus, ou o anti-heroi, cínico, exorcista e viciado em cigarros John Constantine, está fora do tempo e do espaço. Estão perdendo muito do que melhor se produz hoje em dia em matéria de Graphic Novel, que uma espécie de livro contado através de HQ.
A menina que tinha dons (Fábrica 231, 383 páginas) é um YA com tendências filosóficas. Você pode lê-lo como uma simples aventura ou se enveredar pelo abismo psicológico das personagens. A escolha é sua.
De início impactante, somos jogados em um ambiente claustrofóbico:
“Agora ela tem 10 anos e a pele de uma princesa de conto de fadas... ela tem uma cela, o corredor, a sala de aula e o chuveiro... A cela é pequena e quadrada. Tem uma cama, uma cadeira e uma mesa. Nas paredes, que são pintadas de cinza, existem quadros... Às vezes o sargento e seu pessoal mudam as crianças, então Melanie sabe que algumas celas têm quadros diferentes.”
Em um mundo pós-apocalíptico um vírus atingiu a grande maioria da população. Atualmente crianças são mantidas presas em uma base. É lá que vive Melanie, uma das prisioneiras. A partir daí M.R.Carey começa a demonstrar a que veio, com parágrafos maravilhosos, cheios de poesia:
“As coisas saíram dos eixos rapidamente depois disso – a trégua era apenas um artefato do caos, criado por forças poderosas que se anulavam momentaneamente. A infecção ainda disseminava e o capitalismo global ainda se destroçava – como os dois gigantes se devorando na pintura de Dalí intitulada Canibalismo de outono. Nem toda coreografia de relações públicas pôde vencer, no fim, o Armagedom. Ele passou por cima das barricadas e se deleitou.”
Melanie é uma criança diferente, aliás todas o são. Ela adora a escola e principalmente sua professora Helen Justineau, que vive um grande dilema de consciência com relação ao cativeiro das crianças:
“As coisas vão desmanchar e o centro não aguentará. Esburacado de medos e inseguranças, a turma se desfará em pedaços. Finalmente farão as perguntas que Justineau não pode responder. Ela terá de escolher entre a confissão e a evasiva, e qualquer uma das duas provavelmente a chutará pela beira da curva da catástrofe.”
O desejo de Melanie é ser Pandora (que numa tradução livre quer dizer: a quem possui todos os dons – do titulo original The girl with all the gifts), que na mitologia é possuidora de uma caixa que contém todos os males. Ela também possui dons, mas seriam eles benção ou maldição?
O sargento Parks é quem guarda a base, juntamente com seus soldados. Agressivo e radical, tem no sangue a vida militar e não há remorsos em suas decisões:
“— Pensei que estivesse com frio — diz Parks, surpreso. — Você estava tremendo. Desculpe. Não pretendia nada além disso.
Por um bom tempo ela fica ali olhando para ele, num silêncio mortal.
E então ela fala. E só há uma coisa que pensa em dizer.
Põe pra fora, desabafa, em retrospecto, a bebida, as lembranças, os últimos três anos de sua vida.
— Já matou uma criança?”
Entre o dever e a consciência, o dever fala mais alto. A base serve como laboratório de pesquisa da Dra. Caroline Caldwell que se serve de suas cobaias sem anestesia, sempre sem sair do salto:
“Caroline Caldwell separa cérebros de crânios com muita habilidade... Olhos piscam em convulsões aceleradas, entram e saem de foco numa inútil atividade incansável... A cobaia está morta.”
“... Usava batom todo dia, apesar de sua escassez... representa a melhor frente de batalha para o mundo. Em tempos de ferrugem, ela surge aço inoxidável.”
O enredo é sem firulas, direto, com emoção e aventura de sobra, escrito por um roteirista experimentado. Mas não é um livro simples, muitas vezes a linguagem é complexa e fiquei me perguntando se a experiente tradutora Ryta Vinagre tem algo a ver com isso ou se ela seguiu fielmente o original.
site:
Leia mais em: http://www.lerparadivertir.com/2015/01/a-menina-que-tinha-dons-m-r-carey.html