Flávia Menezes 08/11/2022
??S?IL VOUS PLAIT, UM CAFÉ-CRÈME E UM EAU-DE-VIE PRO ERNEST
?Paris é uma Festa?, é uma obra de não-ficção editada a partir dos manuscritos de Ernest Hemingway, lançado em 1964, ou seja, três anos após a morte do escritor.
A ideia de reunir essas anotações feitas pelo escritor no período no qual ele viveu em Paris com sua primeira esposa, Hadley Richardson, surgiu quando sua última esposa e viúva, Mary Hemingway, recuperou dois pequenos baús que Hemingway havia deixado no porão do Hotel Ritz Paris, em maio de 1928, e que continham cadernos nos quais o escritor havia preenchido com anotações durante a década de 1920.
Mary, então, transcreveu os cadernos e começou a preparar o livro de memórias, que retrata tanto o processo de escrita adotado pelo escritor, quanto sobre o seu convívio com personalidades, tais como Pablo Picasso, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, e James Joyce, apenas para citar alguns.
A narrativa desse livro é simplesmente deliciosa, e o que mais me encantou foi essa sensação que ela emana de se estar sentada em um café em Paris, em um lindo e agradável dia de primavera, observando um mundo bastante diferente desses da nossa atualidade, enquanto converso com Hemingway. Tempos em que uma guerra havia feito seus estragos, mas que, naquele momento, era o vislumbre de novos tempos, novas oportunidades.
Exatamente o que o jovem Hemingway buscava, tendo ele deixado sua vida de jornalista, para se aventurar na cidade do Velho Mundo que respira à romance, e deixar que sua criatividade pudesse fluir tão naturalmente que, um belo dia, lhe renderia uma obra que realmente o tornaria um grande escritor.
O mais gostoso de acompanhar a narrativa, e observar o processo de imersão na escrita no qual o jovem Ernest Hemingway viveu, é que podemos sentir as dificuldades vivenciadas por ele, para percorrer esse caminho audacioso da escrita.
Hemingway não era nenhum abastado que passava o seu dia esbanjando luxos como todo bon-vivant, enquanto escrevia os contos que venderia para revistas alemães. Ao contrário, em um dos capítulos que para mim foi o mais tocante, ele descreve o quanto chegava a pular as refeições, e passava fome por não ter dinheiro o suficiente para prover para a sua família. E quem foi que disse que um escritor se faz apenas de momentos felizes e tranquilos, não é mesmo?
Mas até nesses momentos de dificuldade, há poesia, há fluxo de criatividade correndo em cada uma das páginas. Nesse capítulo em que ele não tinha muito o que comer, existe uma consciência tão diferente sobre o se esvaziar do alimento para se preencher pela arte, que me tocou profundamente. De fato, um momento de tão grande identificação, porque nem sempre é o alimento que nos sacia. E quando a arte corre pelas nossas veias, a necessidade de se sentir preenchido(a), de se satisfazer vai muito além das necessidades básicas humanas. E nisso, eu entendi bem o jovem Hemingway!
Aliás, existem ali detalhes sobre atos e ações tão importantes que nos dão acesso à criatividade, que faz desse livro uma fonte riquíssima para quem quer ser escritor. A forma como Hemingway transita entre o processo de escrita e a vida ao seu redor é uma verdadeira aula de que um bom escritor, também precisa se enriquecer com o mundo. Tudo isso, sem perder o seu tempo de escrita, é claro!
Curioso como aquilo que mais desagrada as pessoas, pode agradar à outras. E eu confesso que essa personalidade explosiva do jovem Hemingway me encantou, porque suas emoções transcendem às suas palavras. Ele dizia o que vinha à sua mente, mas também sabia viver bem suas amizades, e se mostrou bastante inteligente diante de pessoas difíceis como Gertrude Stein e F. Scott Fitzgerald.
Aliás, como me deixou impressionada a parte em que o livro retrata F. Scott Fitzgerald. Era a descrição exata do seu próprio personagem, Gatsby. E confesso que foi bastante divertido ver algo tão surreal, sobre personalidades que praticamente viviam o que escreviam, mesclando a ficção com a vida real.
Em muitos momentos, Hemingway me lembrou da biografia que eu li sobre o Tolkien, pois ambos se ausentavam por um longo tempo de suas casas, passando o seu dia ao lado de outros escritores e artistas, falando sobre suas obras e se alimentando da criatividade uns dos outros.
O que deve ter sido uma vida bastante solitária para Hadley Hemingway, sozinha em Paris, e o que me faz querer ler muito em breve o livro da autora Paula McClain, ?The Paris Wife? (título em português ?Casados com Paris?), que em uma narrativa ficcional traz uma série de pesquisas para compor como foi a experiência desses anos em Paris olhos da Hadley.
Mas muito embora ele passasse mais tempo longe, ainda assim, era bonito ver a cumplicidade e companheirismo que ele mantinha com a esposa. As viagens, as longas conversas sobre bons momentos que desfrutaram juntos, os jantares que frequentavam juntos em Paris, e as corridas de cavalos em que se divertiam apostando, foram momentos que me tocaram profundamente.
Por trás de grandes homens tais como Stephen King, J.R.R. Tolkien e Ernest Hemingway, se esconderam grandes mulheres. E é exatamente por essa parceria que faz toda a diferença, que os impulsiona e possibilita uma imersão tão profunda ao mundo da escrita que os faz alcançar o tão sonhado sucesso nesse universo tão concorrido, que termino com um dos diálogos que mais me tocaram nessa história:
? ? Ah, uma coisa que eu aprendi bem.
? O quê?
? Que nunca se deve viajar com uma pessoa a quem não se ame.
(...)
? Pobre Scott. ? disse eu.
? Pobre todo mundo. ? disse Hadley. ? Pobres tipos cheios de si e de vento.
? Nós é que somos felizes, meu bem.
? Vamos fazer força para continuar assim.?