otxjunior 25/10/2020Filme Noturno, Marisha PesslSabe quando, num filme de David Lynch por exemplo, nos sentimos quase que frustrados porque sabemos que eventualmente aquela premissa envolvente vai para o espaço e o diretor vai pirar modificando a lógica da narrativa para a mais onírica possível? Filme Noturno, de Marisha Pessl, em sua tentativa de confundir a fronteira entre sonho e realidade não tem momentos surreais suficientes e a trama linear nem é tão envolvente assim.
É um conto de obsessão do protagonista pelo diretor recluso, Stanislas Cordova, cuja horda de fãs literalmente tocam o terror. O irônico Scott McGrath, depois de perder sua credibilidade como jornalista investigativo, recomeça a caçada depois do suicídio da filha de seu nêmesis. Em sua busca ele reúne personagens no mínimo peculiares. Como é o caso da cartunesca Nora Halliday: a última vez que li sobre uma aspirante a atriz, fofa mas de uma maneira irritante, com um pet carismático, que se voluntaria rimando a uma aventura aleatória de interesse exclusivo de um completo estranho foi no lúdico Te Apresento Meu Amigo, de Will Monteath, lembrança que eu realmente não esperava ter aqui.
As piadinhas constantes e referências à cultura geral (o que diabos significa "parecer a irmã punk de Confúcio"?) devem ter sido o inferno para o tradutor. O romance também traz como façanha multimídica a inserção de páginas de portais web, transcrições de telefonemas, matérias de revistas, etc. O que, tendo lido no Kindle, foi ao mesmo tempo difícil pelo tamanho da fonte e me fez pular de susto ao, sem prévio aviso, ter uma representação não verbal do personagem que acabei de ler sobre num virar de "páginas".
Aliás, detalhes da história da rivalidade presente no enredo entre atrizes me remeteram à contenda real entre as irmãs Joan Fontaine e Olivia de Havilland. Seria Cordova Hitchcock? Não sei, mas se já houve um livro que grita por uma adaptação cinematográfica é este! Talvez sob a direção de Peter Jackson, apenas porque tem mais finais que o último episódio da trilogia dO Senhor dos Anéis! E se tivesse mais, é provável que minha cotação chegasse à máxima, pois o último é sempre melhor que o anterior.
Reparou que só não é mais difícil resenhar Filme Noturno do que avaliá-lo? Passada a comoção, acho que quanto mais penso sobre, menos gosto. Dito isso, a conexão com a história e personagens se dá, talvez tardiamente ou por um preço alto, que seja, e certamente nos termos da autora, mas acontece; e quando o faz vem ligada a passagens de vívida emoção e pungentes em seus comentários sobre arte, vida, relacionamentos, memórias, crença e verdade. Ainda com uma visão romantizada do sofrimento como estímulo ao processo criativo e as prerrogativas do artista de ir a lugares de "escuridão imaginável e rios de sangue" só para sentir algo e voltar "impune" das consequências colaterais para mero mortais, que você seguramente não irá encontrar no próximo thriller.
O fato é que por quase toda a leitura, que não é curta diga-se, não saberia dizer se estava gostando realmente, exceto pelo primeiro terço que só achei chato mesmo. Tendo como ponto de virada a histérica cena numa loja de artigos religiosos para feitiçaria, cuja proprietária sozinha justifica um spin-off. Este filme eu pagaria pra ver!