Jow 09/02/2011Quis custodiet ipsos custodes?Quis custodiet ipsos custodes? é uma frase em latim atribuída ao poeta romano Juvenal, traduzido de várias formas como "Quem vigia os vigilantes?", "Quem vigia os vigias?", "Quem guardará os guardas?", ou similares.
O problema essencial foi proposto por Platão, em seu livro A República, sua obra sobre governo e moralidade. A sociedade perfeita como descrita por Sócrates, o personagem principal da obra, depende de uma sociedade movida por hierarquias sociais, onde cada um tem a sua função específica segundo a sua classe. Com isso, essa sociedade seria baseada em regras estabelecidas e fixas, cabendo aos camponeses o trabalho no campo, as mulheres a educação de seus filhos, aos escravos trabalho pesado, e aos homens de posses munidos de um poder elitista administrariam as cidades. Por fim, teríamos uma classe guardiã para proteger a cidade e fiscalizar as leis.
Assim, uma pergunta é feita a Sócrates: "Quem guardará os guardiões?" ou, "Quem irá nos proteger dos protetores?" A resposta de Platão para esta pergunta é que os guardiões irão se proteger deles mesmos. Nós devemos contar a eles uma "mentira carinhosa." A mentira carinhosa lhes dirá que eles são melhores do que os que eles servem e é então, responsabilidades deles guardar e proteger aqueles que são menos do que eles mesmos. Nós instigaremos neles um desgosto por poder ou privilégio; eles irão mandar porque eles acham ser correto, não porque eles desejam.
Ao ler A Rainha do Castelo de Ar essa frase histórica martelava em minha cabeça constantemente. Era impossível pensar que o enredo dessa obra fantástica terminaria dessa forma, com uma conspiração nacional, com tantas reviravoltas político-sociais, e com debates calorosos no modo de como nos vemos como sociedade, cidadãos, civis comuns. Desde já, me sinto gratificado por me deixar entreter com a magnífica obra de Stieg Larsson. É uma pena que esse gênio tenha nos deixado, por que depois de 1800 páginas viradas, a sensação de quero mais é enorme.
Dentre as ótimas lembranças que levo desse livro, fica a genialidade de Larsson em descrever situações corriqueiras, de elaborar um enredo construtivo onde os arcos da história são resolvidos sem muita demora, e onde as reviravoltas são constantes e surpreendentes. É impossível se perder no emaranhado de acontecimentos, Larsson sempre está nos guiando bem, em meio a esse labirinto de investigações e provas verdadeiras e falsas.
E mais uma vez, não poderia esquecer das personagens tão marcantes dessa obra... Mikael Blomkivst, é um homem de valores, de caráter robusto e de temperamento forte, um investigador nato que se preocupa com o bem estar social e que defende uma ideia até a morte. Me atrevo a dizer que ele é um auto-retrato do próprio Stieg Larsson. Gostei muito da desenvoltura de Annika Gianinni nesse livro, ganho espaço e foi fundamental no desfecho da obra. Érika Berger me decepcionou um pouco, acho que seu arco na história ficou confuso e esse pode ser o ponto negativo do livro. Faço menção honrosa a jan Bublanski e aos seus detevives colaboradores, a Holger Palmgrem, Dragan Armanjski, e a Malu Ericksson e a turma da Millenium.
Mas, como sempre a minha atenção recai sobre uma das personagens mais fantásticas já criadas: Lisbeth Salander. É impossível não se render aos seus caprichos, sua genialidade, seu humor negro e ao seu senso de anti-social. Lisbeth é o elo que liga o inicio desse texto. Larsson desenvolveu em Lisbeth Salander a imagem do ser humano totalmente marginalizado pelo sistema social, e que se vê obrigado a literalmente improvisar nas horas difíceis. E o que nós, como sociedade fazemos? Simples, viramos as costas e marginalizamos ainda mais essas pessoas. Lisbeth se tornou o que é, não por escolha própria mas, por que a sociedade e principalmente as autoridades viraram as costas pra ela. É o típico caso onde todos nós viram as costas! E depois quando algo catastrófico acontece, somos os primeiros hipócritas sem escrúpulos a protestar e condenar.
Considero Lisbeth Salander uma heroína dos tempos modernos, alguém que usa o sarcasmo (quando ela fala!), o anonimato e as brechas na lei para fazer justiça, para punir aqueles que a caçaram injustamente. Sou um cara que odeia a questão do politicamente correto, considero tal tema uma balela total, e encontrei em Lisbeth Salander a prova de que existem pessoas que compartilham da minha opinião, de que viver em sociedade é mais do que viver numa sociedade de regras ultrapassadas, injustas e hipócritas.
Com graves denuncias ao modo como os serviços secretos funcionam querendo dominar a vida dos civis, denúncias ao mercado de prostituição do leste Europeu, com o alerta do trabalho infantil sustentado por um mercado negro de fanfarrões do governo e da imprensa, e com um enredo nuca antes visto neste gênero de leitura, A Rainha do castelo de Ar encerra de forma magistral a Trilogia Millenium.
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