jota 11/02/2023ÓTIMO: o interior mineiro nunca foi tão pouco bucólico, triste e violento como aqui; daí que muitos se surpreenderão com esses contos, uma obra singular de nossa literaturaLido entre 06 e 10 de fevereiro de 2023.
Otto Lara Resende (1922-1992), mineiro de São João del Rei, passou grande parte da vida no Rio de Janeiro, onde faleceu. Além de escritor também foi jornalista e seu círculo de amizades na cidade incluía vários intelectuais, como Vinícius de Moraes, Fernando Sabino e Nelson Rodrigues, os mais próximos. O último o homenageou com uma peça de teatro, “Otto Lara Resende ou Bonitinha Mas Ordinária”, a partir de uma conhecida frase do próprio Otto, “O mineiro só é solidário no câncer.”, que definiria com amargor a essência do ser humano. Um amargor que perpassa todos os contos desse livro notável, Boca do Inferno.
Os textos de Otto e Nelson têm várias coisas em comum, são essencialmente dramáticos e seus personagens parecem estar quase sempre à beira do abismo, prontos para nele se jogarem ou serem jogados pelos outros. Mesmo que sejam crianças, como ocorre aqui, um livro protagonizado por pré-adolescentes, sobretudo garotos. Também penso que as histórias de Otto dialogariam bastante com várias narrativas do paranaense Dalton Trevisan e até mesmo com o clima de certos trechos do livro de outro mineiro conhecido, Lúcio Cardoso, autor do magistral Crônica da Casa Assassinada.
Bem, antes disso tudo me vir à mente, e eu quase nem me lembrava mais, precisei pesquisar, havia lido apenas dois contos de Otto, presentes em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, seleção de Italo Moriconi, Gato Gato Gato e O Elo Partido, que agora, depois de Boca do Inferno, fiquei tentado a reler, pois passados mais de 20 anos da publicação da Editora Objetiva (li a edição de 2001), certamente irão me parecer inéditos e formidáveis.
Boca do Inferno é um livro não muito extenso (tem menos de 200 páginas), traz apenas sete histórias – mas aqui a qualidade da escrita supera de longe a quantidade de contos e páginas – e um enorme posfácio do poeta, editor e professor de literatura brasileira da USP, Augusto Massi, “Narrador de Tocaia”. Enorme porque é mesmo grande, tem muitas páginas, muita informação, e também porque recoloca Otto Lara Resende no seu devido lugar na história da literatura brasileira: ao lado de nossos maiores autores do século XX. E olhe que OLR nem publicou tantos livros assim.
Dedicou-se mais ao jornalismo, à crônica melhor dizendo; publicou 508 delas na Folha de São Paulo entre 01/05/1991 e 21/12/1992, segundo Massi em artigo na própria FSP. Ele, além de resumir as sete histórias de Otto também as explica, deixa claro que sua literatura, especialmente Boca do Inferno, por ter sido uma obra incompreendida e duramente criticada por muita gente durante muito tempo, teve parte nisso. O final de alguns contos – OLR sabia como terminar brilhantemente uma história – deixa o leitor não propriamente escandalizado, mas perplexo, chocado, ainda hoje. Imagine-se então em 1957, ano do lançamento do livro, tempo em que o Brasil tinha enorme população rural, poucas universidades, bibliotecas, livrarias e meios de comunicação, catolicismo tradicional etc. Assim, a Minas Gerais de OLR, o interior dos tempos de sua infância e depois, torna-se um lugar sombrio para o leitor. Até mesmo macabro por vezes...
A violência dos adultos – mas não apenas deles, como se pode ver em O Porão – contra as crianças (às vezes igualmente contra os animais, especialmente gatos) está presente em quase todos os contos e ela pode ser também psicológica, não apenas física, como ocorre com a garota que protagoniza O Segredo, que já havia sido assediada por dois homens em diferentes ocasiões e vê sua mãe não se incomodar com isso, não acreditar nela. Duas outras boas histórias são protagonizadas por meninas, Namorado Morto e Três Pares de Patins. Mas me pareceu que os melhores contos, os que conseguem prender a atenção do leitor com mais intensidade e mesmo depois do final nos fazem ficar pensando nos protagonistas, no sofrimento excessivo de alguns deles e como reagiram a situações-limite em suas vidas, são os quatro restantes. Filho de Padre, Dois Irmãos, O Porão e O Moinho são histórias magistrais envolvendo religiosidade e ou crueldade sob vários aspectos. O final de cada um é de arrepiar.
Não tenho o talento de Massi ou de outros leitores para conseguir escrever com melhores palavras tudo que me veio pela cabeça (e pelo corpo, especialmente no caso de Dois Irmãos e O Moinho) durante essa leitura. O que ocorreu foi que comecei a me lembrar de outras histórias com personagens infantis, algumas delas lembradas pelo próprio Massi, como a já clássica Infância, de Graciliano Ramos. Lembrei-me também das aventuras e do sofrimento de outro garoto, do livro O Pássaro Pintado, do polonês Jerzy Kosinski, mas o cenário era o da Segunda Guerra Mundial. Certo, é ficção, mas não é apenas isso: não se pode generalizar sempre, dizendo que a infância é o melhor período de nossas vidas. Não para todo mundo: nesses dias fico acompanhando o drama das crianças yanomamis, de seu povo, dos meninos e meninas turcos e sírios atingidos pelo terremoto, suas mães, pais, irmãos... Então melhor parar por aqui.