Acad. Literária 21/02/2015
RESENHA - Eu Destruí Aquela Vida
Resenha Originalmente publicada no blog Academia Literária DF
O que pode acontecer quando um deus, possuidor da eternidade, é acometido pelo tédio? E quando este não é exatamente um deus amoroso e benevolente como os humanos, em sua eterna ignorância das questões não materiais, tolamente acreditam ser? Acontece o seguinte: esse deus simplesmente dispõe de um dos seus muitos brinquedos cuja vida nada significa para ele e que, desafortunadamente, despertou-lhe a atenção. Simples assim. O brinquedo da vez é Roberto, um filósofo defensor do Utilitarismo e professor universitário especialista em ética que trai a esposa. Ética, traição e uma visão de mundo que justifique a coexistência de ambas? Eis algo que poderia chamar a atenção de um deus entediado... E a brincadeira se inicia com uma oferta e um acidente.
“Eu Destruí Aquela Vida” é um título bastante apropriado para esta história. Trata-se de uma trama com bem mais que uma dose de sadismo, em que um deus cruel dispõe da vida de um homem, criando e provocando situações, mexendo com sua cabeça e sua racionalidade, privando-o das coisas mais importantes da sua vida, levando-o a duvidar inclusive da realidade das coisas, conduzindo-o pouco a pouco à loucura, com o único propósito de se divertir e afugentar o tédio, ao menos por um tempo. Assim é “Eu Destruí Aquela Vida”: sádico, perturbador, dramático, irônico, filosófico, singular. E inteligente, sobretudo inteligente. Em suas poucas páginas (192), uma teia de tragédias, arrependimentos, confusão e falsas certezas invade a vida de Roberto a ponto de fazê-lo abandonar tudo em que acreditava. E aos poucos o homem vai perdendo a sanidade, percorrendo um ciclo de culpa, medo, amor e miséria, e, ao passo em que enlouquece, comete atos extremos e chocantes. Mas a loucura de Roberto não é desprovida de lógica. Ele não é um louco desconexo e sem razão. É apenas um homem que se apega a uma crença que nunca tinha lhe ocorrido e sua loucura – assim parece para quem o observa – tem ainda algo de filosófico, possui um fio condutor e a mão que tece esse fio é de um deus sádico e entediado que se diverte com as conclusões a que Roberto chega a partir das pequenas pistas (falsas e verdadeiras) que ele oferece. Mas sendo ele um deus – embora essa denominação seja apenas intuída pelo leitor, uma vez que o próprio personagem não se refere a si mesmo dessa forma, explicitamente, nem uma vez – suas ações e suas intenções não são reveladas a Roberto e este, como todo humano, permanece no escuro quanto à força que interfere na sua vida.
Há neste livro dois protagonistas: Roberto, aquele que movimenta a história, que pratica as ações, que experimenta a incerteza e a culpa, em quem toda a trama se foca; e a divindade, aquele que narra a história, que observa os acontecimentos e se deleita com a confusão e o remorso que provoca ao interferir diretamente com a mente de Roberto. O tempo narrativo também se divide em dois: uma narração em terceira pessoa cujo narrador onipresente é a própria divindade, relatando as ações, pensamentos e sentimentos de Roberto e das pessoas com quem ele se relaciona; e também uma narração em primeira pessoa, quando a divindade dialoga diretamente com o leitor, apresentando-se, explanando sobre seu tédio e seu jogo com Roberto, fazendo apontamentos acerca de correntes filosóficas sobre as quais os humanos se debruçam (correntes divergentes defendidas por Roberto – o Utilitarismo – e por seu pai – o Ceticismo) e sobre a natureza da crença em divindades como Jeová, o deus cristão, por exemplo. Nesses trechos, sempre alguns poucos parágrafos no início de cada capítulo, a divindade deixa transparecer um pouco de sua “personalidade”, extrovertido e cruel. Faz lembrar um pouco os deuses gregos, tão antropomórficos em suas emoções. Mas não é possível determinar de que deus se trata, nem mesmo se é realmente um deus ou outra entidade qualquer, visto que, como dito anteriormente, ele não se denomina nem diz seu nome. Nas palavras dele: “faço o que quero e você não sabe absolutamente nada de mim” (pág. 9).
A estrutura do texto é simples, mas bem construída. São parágrafos curtos, todos iniciados com as divagações da divindade e, após uma pausa textual marcada com um símbolo, a narrativa prossegue com foco em Roberto. Todos parágrafos curtos, exceto um, justamente aquele em que boa parte da ação e da pesada carga dramática se concentra. O trabalho gráfico no interior do livro é simples, porém notável: desprovido de ilustrações, os símbolos de abertura dos capítulos e das pausas textuais são de uma beleza singular. A revisão está adequada, uma vez que apenas um erro de pontuação se faz notar. A capa é o único “porém” nos aspectos editoriais: embora a imagem com o anjo em pedra cobrindo os olhos em sinal de lamento, típico adorno de túmulos antigos, seja bastante significativa, a obra merecia um trabalho mais elaborado para representá-la. A prosa mostra uma maturidade e uma estilística que contrasta com a juventude do autor, então um rapaz de 20 anos quando da publicação do livro. Também impressiona a consistência das ideias e dos argumentos.
Falando no autor, ele é Victor Gomes, um estudante de Filosofia (!) da Universidade de Brasília. Nascido em março de 1994, este brasiliense apaixonou-se cedo por literatura e decidiu contar suas próprias histórias na esperança de causar em seus leitores o mesmo deslumbramento que tantos livros lhe trouxeram. Com sua obra de estreia, Victor mostra potencial para ir muito longe nessa empreitada.
“Eu Destruí Aquela Vida” é um livro para quem aprecia histórias intensas. É um livro para quem deseja algo mais que uma simples leitura. É uma reflexão. Uma alegoria filosófica sobre a ignorância humana acerca da natureza divina, se é que existe mesmo algo divino a reger nossa pobre e frágil vida. Um flerte sobre a fragilidade do véu que separa a crença do fanatismo, a lógica da loucura.
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