guh48 14/07/2023
Encantador
‘Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade’ é organizado pelo professor e escritor James N. Green e por Renan Quinalha, escritor e assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, e monta, a partir de textos de variados autores, cada um de determinada área, uma análise interdisciplinar das relações entre a ditadura brasileira e as homossexualidades, como definido na apresentação da obra.
Não estou familiarizado com obras desse tipo, então confesso que, por mais que ansioso, estava também bastante receoso em ler o livro. Um pouco de medo de não me adaptar ao estilo de escrita, um pouco de medo de achar o livro tedioso, mas logo na primeira sessão da obra, o prefácio de Carlos Fico, me entretive de maneira quase que mágica, e essa sensação só foi aumentando com o passar das páginas. Todos os capítulos, por mais que construídos de maneira isolada, conversam entre si - mas o mais impressionante é a maneira que eles foram ordenados, criando não só uma história única a partir de diferentes pontos de vista, mas dando um dinamismo perfeito pro desenrolar do livro.
Sobre o conteúdo do livro em si, gostaria de destacar alguns pontos em especial:
Em primeiro lugar, gosto que o livro não tenta forçar nenhuma narrativa que aumente ou diminua os atos de violência e repressão contra (o que é hoje) a classe LGBTQI+ durante a ditadura; todos os autores, mas em especial Benjamin Cowan, que tem um capítulo dedicado praticamente apenas a esse tema, entendem de que maneira a repressão ditatorial era feita, e que a busca pela destruição da falsa ‘ameaça comunista’, ou seja, a repressão política, era maior do que a repressão aos homossexuais, lésbicas ou travestis; o que é feito, entretanto, e muito bem feito por sinal, é uma relação entre a a repressão dos inimigos políticos e a repressão aos que saíam da visão conservadora de sociedade. Uma relação entre as repressões política e sexual.
Em segundo lugar, gostei bastante do capítulo sobre as lésbicas durante a ditadura, escrito por Marisa Fernandes. Claro que a repressão contra os homossexuais, lésbicas e travestis durante a ditadura já é um tema muito pouco tratado dentro das amplas discussões sobre a ditadura (disso veio a necessidade de se criar esse livro), mas mesmo dentro da comunidade LGBTQI+ existe um apagamento muito forte da mulher dentro de todas as lutas contra o regime militar. O capítulo acaba sendo muito representativo não apenas por continuar contando a história da repressão durante o regime, mas principalmente por dar, finalmente, palco e importância para as lésbicas nesse contexto. (Ah, e só uma coisa que eu achei bastante engraçada: enquanto grande parte dos capítulos têm umas 3 páginas só de referências, esse em específico possui apenas uma referência que é um livro ficcional da Cassandra Rios; isso porque a Marisa Fernandes, autora do capítulo, foi uma das lideranças do movimento lésbico da época, então o capítulo possui uma autenticidade absurda porque é feito de relatos de uma vivente das situações)
Por último, queria só parabenizar Jorge Caê Rodrigues pelo capítulo sobre o Lampião da Esquina e James N. Green pelo capítulo sobre o Grupo Somos. Ambos capítulos muito bem escritos, com níveis de cuidado, pesquisa e escrita absurdos, principalmente o do Somos, porque James N. Green foi uma das lideranças do grupo.
Só pra não falar que o livro não possui nada de ruim, porque tem alguns pontos que me incomodaram um pouco durante a leitura, achei que, por ser uma coletânea de textos que tratam todos, indiretamente, do mesmo assunto, a história vai aos poucos se tornando repetitiva. Pulei alguns capítulos no fim do livro com bastante tranquilidade porque entendi que eram uma repetição do que já tinha sido tratado antes. Claro que é irritante, mas não chegou a ser nenhum grande problema.
O livro é, sobretudo, necessário. Não trata ‘apenas’ da história da repressão dos homossexuais, transsexuais, travestis e lésbicas durante o regime de exessão de 64, trata do nascimento de um movimento LGBTQI+ organizado; trata do surgimento do movimento da qual todo guei, lésbica, transsexual, travesti, bissexual ou qualquer outro integrante da sigla que seja politizado faz parte hoje; trata do ínicio da luta por democracia, equidade, liberdade; trata do início de um movimento identitário que vem sendo construído até hoje, mesmo mais de 60 anos depois.