Aline164 22/01/2024Mais um livro sobre uma escritora que vai pra algum lugar escrever/ fugir da realidadeEsse livro me lembrou um tuíte que era algo do tipo: "Escritores brancos, hétero, cis, classe média: não precisamos de mais livros sobre escritores tendo bloqueios criativos. Já deu, né?". EscritorA escrevendo sobre esse tema = ok? :)
Embora o livro não seja bem sobre isso, Ana, uma escritora provavelmente branca, hétero cis, classe média/alta vai para o sítio de uma amiga atriz para escrever um romance baseado em uma escrava que jogou uma maldição nas mulheres das cinco gerações seguintes da família dela antes de ser assassinada; essa maldição terminaria com ela. Na verdade, ela toma todas numa festinha, vai pra casa de um cara igualmente bêbado, eles transam sem camisinha e na manhã seguinte o cara fala que tem HIV [detalhe: ela tem uns 35 anos, não é uma adolescente p0rr@ louca com o córtex pré-frontal imaturo]. Ana fica puta com o cara e depois com ela mesma, vai fazer os procedimentos pós-exposição e, até dar o tempo para fazer novos exames, vai para esse sítio escrever.
No sítio, encontra Daniel, um artista que fez uma cabana tosca com ajuda do antigo caseiro com o objetivo de se isolar e desenhar por um certo tempo.
Daí acontece o óbvio: os dois se apaixonam. (Fiquei tensa sempre que parecia que a Ana ia transar com o Daniel, mesmo sabendo que talvez tivesse HIV. Não vou dar spoiler sobre isso... porém... tenso.)
Alguns trechos são o livro que a protagonista está escrevendo, e achei tudo meio... chato? Mas faz sentido, porque a professora da primeira oficina de escrita criativa que fiz na adolescência disse que sempre que houvesse um personagem com determinada profissão, em algum momento, para dar mais veracidade à narrativa, uma "prova" deveria aparecer. No caso, a mina era escritora, então trechos do trabalho dela estavam ali para "provar" que ela de fato sabia escrever.
Outros personagens que atravessam a narrativa no presente ou em flashback: a cozinheira, seu marido, a filha adolescente dela, o caseiro, a amiga atriz, os pais de Ana, as irmãs de Ana, seu padrasto.
A Tatiana Salem Levy escreve bem, isso é fato, e a leitura prende (menos a narrativa da escrava, que achei meio chata/insossa), mas me questionei em vários momentos o quanto esse tema está desgastado: um escritor ou uma escritora que vai pra algum lugar escrever. Também pensei no quanto me interesso muito mais por outros tipos de personagens, moradores de favela, cadeirantes, cegos, marginais ou simplesmente pessoas comuns vivendo sua vida e seus pequenos ou grandes dilemas e no quanto a literatura brasileira e talvez mundial precisa avançar no sentido de diversificar mais e incluir personagens de todo tipo. Tive zero identificação e empatia com essa protagonista, por exemplo.
Para finalizar, vou deixar esse trecho que achei o suprassumo da ironia ou da autocrítica, vai saber:
"[...]
Ouviu com nitidez a sua voz grave. [A escrava] Falava em iorubá, e Ana entendia. Afirmava que escrever sobre a escravidão era mais importante do que contar uma história de uma escritora e de um artista numa casa de campo. Ela não podia continuar presa ao próprio umbigo. Precisava falar do outro, da formação do Brasil, dos anos que se seguiram à decadência do café, das ditaduras, das revoluções. [...]" (p. 143)