Nathaniel.Figueire 22/06/2023Doors and corners, kid (ou, Precisamos falar sobre a Clarissa Mao)Sigo na aventura que me propus para 2023: ler todos os romances, novelas e contos ambientados no universo The Expanse.
Gostaria primeiro de registrar uma conclusão a qual cheguei após ler esse terceiro romance da série sobre o aspecto formal da escrita da dupla que assina sob o pseudônimo James Corey. Em Leviathan Wakes, a forma de narrar em terceira pessoa subjetiva (que chamam no mundo anglófilo de point of view, ou POV) teve como principal objetivo reforçar os significados do conteúdo da obra (a dicotomia/dualidade Holden x Miller, a multiplicidade de significados que um mesmo fato tem a partir de quem o observa etc). A partir de Caliban's War, esse recurso passa a servir somente para permitir a história ser narrada de diferentes pontos espaciais desse universo ficcional, no sentido de construir uma longa história que se espalha por todo o sistema solar. Não há no segundo livro um sentido maior do que esse em utilizar essa forma de narração e isso continua em Abbadon's Gate.
Dito isso, tenho dois pontos que gostaria de ressaltar da leitura desse romance.
"Doors and corners, kid"
Para mim, a morte do Miller em Leviathan Wakes foi também a morte do personagem melhor construído pelos autores. Certo, vivemos em um mundo que se agrada de antiherois, mas a verdade é que Miller, em seu arquétipo de detetive noir niilista, agrada-me demais. Isso eu também achava na série televisiva, pois é facilmente perceptível que Miller passa completamente por cima do Holden enquanto personagem. E então ele morre e, no segundo livro, não temos um personagem com o mesmo magnetismo desse senhor de meia-idade com seu anacrônico chapéu, seu terno cinza batido e seu humor cínico. E então os autores ressuscitaram ele.
Acho sempre perigoso "ressuscitar" personagens (G.R.R. Martin, estou olhando para você), porém, esse Miller porta-voz da protomolécula me agradou bastante. Ele ganha no decorrer desse livro uma caraterística de "complexo de Cassandra", esse fantasma que aparece para Holden avisando de coisas que só no final ele compreende.
O aviso de Miller, "Doors and corners, kid", atravessa todo a história desse romance. Essa metáfora, bem ao estilo noir (como não imaginar aquele momento de medo e tensão em que o detetive da história está prestes a cruzar a próxima esquina e encontrar seu possível fatal destino?), está conectada àquilo que, enfim, se apresenta como o grande argumento da obra: uma história sobre como a humanidade finalmente alcança as estrelas. The Expanse não nos apresenta de maneira sucinta como um motor de dobra ou um acelerador de hiperespaço funciona, essa saga é sobre a trajetória da humanidade tentando quebrar as leis da física que constantemente nos lembra que estamos presos nesse planeta, podendo no máximo chegar aos nossos vizinhos dentro do sistema solar. Essa é uma história cheias de portas e esquinas que a humanidade terá que enfrentar; cheia de perigos, ameaças frente ao desconhecido da vazia escuridão do espaço sideral.
Em diversos momentos os personagens se dão conta da "loucura" que fez a humanidade descer das árvores até ir em direção às estrelas. Somo uma espécie que, mesmo frente todas as adversidades, decidimos (por motivos muitas vezes pouco éticos) que iremos enfrentar todas as limitações que a natureza nos impôs. Colonizar o sistema solar é uma dessas barreiras que a humanidade enfrentou nesse universo ficcional, e em Abaddon's Gate novas portas surgem para os seres humanos explorarem o misterioso (e perigoso) desconhecido que se espalha pela galáxia.
Miller retornando (mesmo que como uma simulação) e o sentido que esse livro dá para a exploração especial é, para mim, o ponto alto de Abaddon's Gate.
Então temos Clarissa Mao, e tudo começa a dar errado.
Precisamos falar sobre a Clarissa Mao
Caliban's War já foi, para mim, um show de pontos de vista com personagens sem graça dos quais eu simplesmente não queria saber o que eles pensavam. Em Abaddons Gate, temos a visão de Bull e Anna, que para mim estão OK (gostei bastante da Anna, na verdade, a ideia de uma pastora metodista no espaço ficou realmente interessante). Agora eu gostaria realmente de entender o que passou na cabeça dos autores ao criar Clarissa Mao e fazer dela um personagem para sabermos seu ponto de vista.
Primeiro, o argumento da vingança dela contra Holden e a tripulação da Rocinante é patético. É algo do tipo: "Eles fizeram todos verem que meu pai é um burguês lunático e assassino em massa, o que é verdade, mas há a honra da minha família e eu preciso me vingar". Nesse processo, ela faz coisas completamente ridículas, como matar seu colega de trabalho e EXPLODIR UMA NAVE COM CENTENAS DE PESSOAS DENTRO! Fica algo do tipo: "Papai foi acusado de assassinato em massa, vou eu fazer um também".
Sinceramente, eu não queria estar lendo as coisas da perspectiva dela. Na verdade, ela quase me fez largar o romance e desistir de ler The Expanse, pois a achei execrável tanto pelos sua motivação (que é muito tosca) quanto pelos seus atos (terrorismo e assassinato em massa). Tive que parar, ler outra coisa e depois retornar para terminar d, mas sempre com muita má vontade nos capítulos dela.
A questão é: era necessário essa personagem na história? Não seria possível achar uma outra forma de colocar a tripulação da Rocinante e as diferentes nações do sistema solar dentro do Anel? E, se a Clarissa Mao era tão fundamental assim, precisávamos ter o ponto de vista dela, como toda aquela ladainha sem sentido contra Holden? (afinal, ela mesmo sabe que Holden não mentiu, o pai dela realmente é um psicopata capitalista sem escrúpulos)
Aí, para colocar uma enorme cereja sobre esse bolo horroroso e ruim que é essa personagem e seus capítulos, no desenlace ela se arrepende de tudo que fez, salva o dia e, ainda por cima, fica insinuado que ela meio que começa a fazer parte da tripulação da Rocinante (depois de ter ferrado eles e quase ter matado a Naomi)! Só um pouquinho: a mulher é uma assassina em massa! Os autores realmente querem relativizar e dar "contexto" para quem comete uma atrocidade dessas?
Durante toda a história há essa mensagem de "acinzentar" as barreiras entre o bem e o mal, o certo e o errado. Tudo o que Anna queria, ao final, era que Clarissa tivesse um julgamento justo, o que é difícil de não concordar. Porém, o que ela ganhou ao final do romance foi empatia (afinal, a narração quer te empurrar a, se não justificar, pelo menos compreender a "grandes" motivação dessa personagem de explodir uma nave por simples motivo de vingança) e simpatia, quase como se a tripulação da Rocinante fosse de santos perdoadores...
Em Lolita, de Vladmir Nabokov, lemos a história de um pedófilo tentando justificar o injustificável. É uma obra fantástica porque nos mostra que, do ponto de vista do mal, ele não necessariamente se vê como mal. Porém, em nenhum momento ao ler o livro vimos, no universo ficcional, as pessoas aceitarem qualquer tipo de redenção para um ato que não há possibilidade de redenção. O leitor que se identifica com Humbert Humbert e tenta justificar seus atos deve sinceramente rever elementos de sua estrutura cognitiva, pois não é por esse motivo que o autor resolveu narrar do ponto de vista de um pedófilo uma história de pedofilia. É muito mais para mostrar o poder narrativo de estarmos na cabeça de alguém, mesmo que abominável, e que as pessoas nunca se enxergam como vilões, mesmo sendo os monstros que são. Reflita: isso é o mesmo que acontece nos capítulos que lemos de Clarissa Mao? O destino dela era ser jogada no espaço sideral ou presa em um cubículo para o resto da vida, não sendo "integrada" a tripulação da Rocinante com um aceno de simpatia. O que os autores fizeram com essa personagem foi, sim, redimir uma assassina em massa.
Alguém poderia dizer que esse é, de certa forma, um dos temas centrais em The Expanse. Afinal, Miller, que acho um ótimo personagem, toma atitudes péssimas em alguns momentos, como assassinar a queima-roupa um dos responsáveis pelo que aconteceu em Eros, até sua "redenção" através do sacrifício. Tenha plena convicção de que não cabe a um indivíduo decidir o que é justiça (não apoio justiceiros). Porém, vejo que as ações extremas de Miller tem graves consequências para ele na história (Holden abandonou ele etc) até o seu sacrifício para salvar a Terra. A diferença entre a situação de Miller e Clarissa são de consequências e escala: um acaba morto e consumido pela protomolécula após ter agido com um policial ruim; a outra acaba integrada na Rociante após ter perpetrada o assassinato de centenas de pessoas.
Não há empatia com assassinos em massa, pessoal. Ponto final sobre isso.
Continuando a saga
Eu vou dar um voto de confiança para os autores e continuar a ler a série porque há elementos aqui que gostei muito, especialmente a ideia de contar a enorme aventura da humanidade atingindo as estrelas (e todas as consequências políticas, sociais, econômicas e psicológicas que isso envolve). Porém, o final dado para Clarissa em Abbadons Gate é simplesmente ridículo e quase me fez desistir de acompanhar, o que deixa o próximo livro para mim em suspeita..
Espero que, nos próximos romances, eu não seja obrigado a continuar lendo o "ponto de vista" de quem assassina centenas e ainda ter que aguentar explicações subreptícias para atos que devem, sempre, ser vistos como abjetos.