Léo 26/04/2017
Profundo e extremo. Um livro encantador.
Assim que o livro foi indicado para leitura, já pude perceber o valor de seu conteúdo para o mundo atual pois seu título sugestivo faz o futuro leitor considerar tantas vertentes para a palpitante sociedade mundial que o prazer em ler a obra cresce instantaneamente. Ao iniciar a peregrinação nas letras de Krishna e suas ilustres figuras, pude entender toda a atmosfera envolvente e contagiante que transborda literariedade por todos os seus prismas. Os contos O que não existe mais (que intitula o livro) e Monte Castelo, são os destaques dessa obra que apresenta ao leitor, sete contos lindíssimos e muito agradáveis para se ler, refletir e sentir.
Esse mesmo ar literário poético encontrado nos arranjos literários do autor, já poderia também ser sentido nas palavras que preenchem o espaço dorsal da parte exterior do material. Ali, a pequena imperatividade em conotação graciosa e harmônica, encanta o leitor e reverbera um instante muito importante antes mesmo da leitura de seu âmago ser iniciada. O autor, ainda, tão vivaz quanto o poeta a escrever, lança para fora toda a subjetividade de um título literário à sua obra, onde a própria imagem já fala por si só. Logo, as memórias se acendem e o sentimento se renova a cada olhar, a cada imagem trazida de longe, refeitas com perfeição em uma nova interpretação do real no fictício. Krishna Monteiro embate a amargura do presente com velhas recordações que revivem instantes importantes, dramáticos, substanciais e até ambíguos. O sentimento de dor, de perda... a saudade que fere, que mora ao lado, que existe mesmo depois que 'Tu' não exista mais.
O narrador, tão melancólico e saudosista, que expulsa seus sentimentos em forma de palavras alinhadas nas entrelinhas de uma jornada inteira, que mesmo depois da falta da existência, continua o ato de existir, a inteirar-se de uma jornada a qual muitos leitores sensíveis, casmurros, que sentem a necessidade de buscar ao longe, o distante tão perto de si. Encontra-se o próprio autor em cada pedaço de conto, em cada trecho lido, em cada situação experimentada.
A narrativa frenética e sedutora, cala o leitor, remete-o para o núcleo das histórias, permite-o alcançar personagens, autor, fatos, ambientes e emoções. Há muito, o site não encontrava uma obra contemporânea tão fiel à nossa literatura nacional clássica, semelhança encontrada ao ler: ''Levanto-me, colho em minhas mãos essa luz... Ao fim da escada, parado defronte ao espelho, certifico-me de que tu, de que teu olhar, não mais habita os limites daquela moldura... talvez sejas eu o morto e sejas tu o vivo, que eu não mais exista e tu sim...''. Certamente, para tais palavras grafadas que constituem a obra em si, faltam outras palavras, estas meritórias, para definir com perfeição a qualidade e a grandiosidade da obra. Vê-se o velho amado "Tu"; um médico que chama; o campo, o cheiro noturno do sereno, a voz que reclama... personagens, elementos e lembranças vivas pela eternidade.
As idéias dos detalhes em expressões rebuscadas dão à escrita de Monteiro a beleza única capaz de engenhar todos os contos com facilidade e sensibilidade. O verdadeiro poeta que escreve relembra, ressuscita, sente, comunica, transborda-se para o próximo em busca apenas de reviver o que não existe mais, que por sinal continua a viver mesmo em suas mais profundas ideologias e lembranças. O mesmo pacto que sela o acordo de João Guimarães Rosa nas encruzilhadas da vida, reveste as marcas de admiração do leitor pelo poeta saudosista, à sua viagem pelo íntimo dos narradores descobrindo as suas fraquezas, dúvidas, melodias, nitidez... ''Agarro-me às rédeas e ao dorso que treme e toma impulso entre minhas pernas... A seus pés, cidades e reinos germinam... Aponto em direção ao vale. Minha mão direita estendendo-se para além de mim e de nós, pousa sobre o semblante daqueles rios e planícies...''
Em O QUE NÃO EXISTE MAIS expressa-se também a visão diferenciada de um personagem inusitado; joga-se as expressões, os trejeitos, os atos, aquilo que forma o instante. As poucas falas nas narrativas deixa claro a necessidade de se contar os sentimentos, as sensações. Elas se assemelham e, em instantes, se entrelaçam, trazendo de volta temáticas como o amor pela vida e por sua continuidade, a necessidade da luta pela sobrevivência, a certeza do fim, a permanência daquilo que, em algum momento, um dia, já foi o presente. O autor desenha, como em um quadro perfeito e em cores, os instantes apagados, a felicidade em branco e preto, imortalizando a mente, ferramenta capaz de desprender a figura até o mais distante pensamento. A imagem do avô que em meio a época de conflitos da guerra dá a ternura ao neto que o ama é, sem dúvida, um dos momentos mais belos e profundos das narrativas. O trecho ''Ansiava por mostrar a ele os retratos que fizera de minha casa, de minha escola, das mudas de árvores acolhidas no jardim. E dele próprio, velho, sozinho, curvado sobre a cômoda...'' marca um desses instantes. Assim como ''Muitas vezes, conversávamos. Noutras, nos sentíamos perfeitamente à vontade nos silêncios, e talvez seja por isso que até hoje a ausência de qualquer som me conforte. O silêncio. Sempre o busquei.'' dá ao narrador a marca de solidão, muito encontrada comumente nos escritos dos poetas mudos.
Realmente é de se admitir que a harmonia das palavras beira a chegada ao Paraíso e mostra ao leitor uma sensação única e, por vezes, inenarrável, inexplicável, de voltar a um passado nunca visto, e ter a certeza de tê-lo vivenciado em alguma etapa da vida. É possível sentir, ouvir, ver e admirar, fitando os olhos, sem piscar, a beleza e ternura reencontrada em pequenos gestos. O que falta para o mundo hoje é exatamente o que não existe mais... essa ânsia pela beleza da rememoração; essa vontade de não deixar se perder no espaço criado pelo passado — entre ele e o presente —, os medos, os desejos, as emoções, o amor, a paixão, o choro, os motivos verdadeiros, a vergonha na ponta da língua, e esperança do velho ou mancebo; essa vontade de não deixar se perder, em nenhum momento, o dom de ser humano, de contagiar com aquilo que, para alguns, não presta mais ou nunca importou...; essa vontade de fazer o bem, de explorá-lo em sua magnitude, de largar a arma e pôr o revólver no chão...
O autor, com todo o seu talento e tato — literário e humano —, contagia ao contar O QUE NÃO EXISTE MAIS. Ler a obra, ainda que em poucas horas, é entender a beleza e importância da renovação das lembranças em forma poética, sensível. Depois da leitura, certamente, O QUE NÃO EXISTE MAIS ainda existirá nos timbres cognitivos do leitor mais apreciador do mundo das sensações e das lembranças.
''Foi a época em que aprendi a codificar a fala numa caligrafia desenhada, lenta. Levava horas para preencher uma folha, que minha mãe colocava sem ler num envelope e despachava no correio... eu, orgulhoso de meu novo dom, sofria menos do que se poderia imaginar, pois era dele a voz trazida pelas cartas que chegavam todo mês... havia sempre um envelope menor, colorido, que minha mãe me entregava para que eu lesse só, sem interferência. Naquela guerra, ao menos em seu início, pouparam-se os inocentes.''
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