bardo 26/01/2012
Kaori Perfume de Vampira – Giulia Moon
Devo confessar que na contramão da onda fantástica quem tem movimentado o circuito literário brasileiro eu não sou exatamente um fã do gênero, quando se fala em vampiros então, eu torço ainda mais o nariz, nada contra o tema em si, mas infelizmente o tema foi muito banalizado e adulterado diga-se. Quando fui apresentado a Kaori, tive certo ceticismo, não fosse a forma gentil como a autora me explicou a história na Bienal, demonstrando um grande conhecimento do que estava dizendo, a grande falha de diversos livros da nova geração é a falta de pesquisas, coisa que ela ao contrário deixou claro, tinha feito o dever de casa, não resisti e me propus a ler. Acostumado aos vampiros profundamente sensuais e intensos de Anne Rice, não me decepcionei, a personagem principal é dotada de uma vitalidade e uma personalidade inquietantes. Alias quase que todos os personagens são extremamente fortes, por mais tênue que seja sua aparição percebemos o cuidado que autora teve na elaboração de cada um deles.
Nota-se que a história passa-se em dois tempos e em dois países diferentes, no Japão Feudal e em nossos dias nas ruas de São Paulo. Alguns vão torcer o nariz para essa construção, eu por outro lado aprecio muito esse estilo, simultaneamente somos apresentados a protagonista e a sua arqui-inimiga a temível Missoura. É visível aqui um certo sabor de Musashi, do herói as voltas com seu inimigo de ódios incomensuráveis e que nunca desiste. No presente temos Samuel um “olheiro”, um jovem meio que sem rumo, com o estranho serviço de investigar os hábitos dos vampiros, entretanto para complicar as coisas na verdade o seu relacionamento com eles é veremos muito, mas muito mais intenso do que seria aconselhável. Temos também as conspirações de Felipe um vampiro extremamente poderoso, a qual uma das ambições é justamente possuir Kaori, com o desenrolar dos acontecimentos veremos que ele é um mero fantoche. Todavia o ponto forte do livro não está no presente e sim no passado, a história de como Kaori foi transformada, seu aprendizado bem como sua idílica e trágica paixão pelo pintor Calixto, o ódio e perseguição de Missoura, rendem os melhores momentos do livro, bem como as partes mais doces e tristes. Giulia escreveu uma história que ainda que vise mostrar uma personagem forte, que apesar de tudo resiste, soube também introduzir momentos de levar o leitor as lágrimas. Além disso temos o samurai encarregado de proteger Calixto, Kodo-san, personagem importantíssimo, e não a toa um espelho de Musashi o lendário samurai que escreveu O Livro dos Cinco Anéis.
Um ponto que tem sido um tanto criticado no livro são as cenas de sexo, as quais alguns consideram excessivas. Na verdade isso é um completo absurdo, uma coisa é um cena jogada, sem contexto outra completamente diferente, quando uma cena é pensada e por trás existe toda uma mensagem embutida. As cenas entre Samuel e Kaori por óbvio expressam o domínio que ela possui sobre ele, dentre outras coisas através da sua feminilidade, algum problema? Pode-se dizer que todas as cenas normais vão nessa linha, vamos parar de ver o sexo como algo sujo??
Agora, e creio que certamente muitos vão se chocar e se chocaram com as cenas de tortura sexual mostradas no livro, bom para começar, não é um livro adolescente, vamos ser francos não estamos lendo livro de vampirinhos água com açúcar, então crianças, por favor, pulem da página 102 até 110 não é um capítulo para vocês. Aqui a autora ousadamente entra nas artes mais cruéis de como dominar e subjugar um adversário, além de mostrar claramente um estranha relação que pode se desenvolver entre dois adversários declarados, o ódio misturado com o amor num todo indefinível. A cena é tão grotesca e medonha, e ao mesmo tempo tão profunda que não creio que algum leitor poderá passar por ela sem se abalar. Me lembrou um trecho de um livro do Nikos Kazantzakis, em que o personagem ao se fustigar com o chicote em penitência num dado ponto passa da dor ao prazer, e começa a se fustigar de forma descontrolada até que seu companheiro o manda parar, ele retruca senti prazer, ao que lhe é respondido, não você sentiu dor, é a mesma coisa. Pode-se extrapolar a reflexão sobre esse capítulo nas diversas relações predatórias que alguns homens e mulheres travam, onde o sadismo e o masoquismo se entrelaçam de forma indissociável.
É certo que as cenas são fortes, ainda mais por se tratar de um quase estupro, porém dentro da lógica mostrada não é algo banal para escandalizar e chocar e sim para se refletir, principalmente porque se não através da tortura carnal direta ou indiretamente também podemos recorrer ou ser vítimas dessa arte milenar de “domar” o outro, através de muitas artimanhas psicológicas. Tanto que o golpe final da aula de submissão não é uma dor física, mas uma dor incutida na alma, a derrota naquele momento é inevitável e a vitória da rival total e completa.
Mas o tempo passa e chega a redenção, e aqui a autora nos brinda com um certo adágio que a única coisa capaz de curar grandes feridas seja o amor, alias o Amor. Mas não é algo piegas, é uma história terna, mas na medida certa.
Damos outro salto no tempo e os fatos sucedem-se em ritmo vertiginoso, porém aqui já não nos aprofundamos tanto, o ritmo muda para algo mais elétrico, mais aventuresco. Entretanto aqui aparece um personagem que pode ser mal interpretado, o vampiro homossexual Mimi, antes que se façam julgamentos precipitados a respeito do jeito “alegre” no qual é descrito precisa-se pensar. Ele é andrógino sim e levemente caricato mas só no ponto que se pretende retratar um homossexual um tanto ousado e levemente debochado, como alias existem muitos; porém a própria descrição física do personagem não deixa dúvidas ele é bem viril. Em nenhum momento a autora o caricatura como uma “mocinha”, salvo quando Samuel numa reação normal de um hétero óbvio manifesta um leve preconceito, mas venhamos ainda que seja um livro de fantasia, não se pode perder o contato com a realidade, alguém está disposto a negar que as reações de Samuel são verossímeis? A construção de Mimi é muito mais respeitosa de que a de diversos personagens criados mídia a fora em séries e novelas, os quais ninguém parece notar o forte deboche e escárnio imbuído na caracterização do personagem. No mais a autora reafirma que não fez Mimi com intenções preconceituosas ao lhe dar um papel muito importante no final da trama e ser a forma dele que outro estranho personagem utiliza daí por diante.
Por óbvio esse seria somente o primeiro livro de forma que o final não é absoluto, não existe um felizes para sempre; não, assim como a vida as peças reorganizam-se e abrem-se o caminho para novos desafios e novas aventuras, não sem antes a autora nos deixar com uma pulga atrás da orelha. Mas isso está claro que ela não vai explicar tão cedo. É um livro muito bom, muito bem escrito, talvez um dos melhores do gênero atualmente.