Ivan de Melo 16/11/2020
Com sangue nos olhos: a cegueira e o limite dos afetos
Tenho já há algum tempo um forte interesse pelas representações da cegueira na literatura e no cinema, pela forma como a visão enquanto sentido e logo sua perda são pontos de exercício para a escrita – do livro ou do roteiro, muitas vezes como metáfora para outras discussões. Pelo fato de grande parte destes textos serem escritos por autores vidente, aqueles que enxergam, a cegueira torna-se um universo fictício, de barreiras e limites muito fluidos que são rompidos com alguma facilidade. Também no ato da leitura a relação é distinta, a produção de imagens nestes textos cede com frequência espaço a produção de sensações por meio da construção narrativa, um desafio e tanto para escritores e leitores. Tenho chamado este projeto pessoal de “Olhares Tiresianos”, uma referência ao fotógrafo e filósofo cego esloveno Evgen Bavcar que provoca a relação limítrofe do olhar em direção a uma nova apreensão do mundo.
Nesse caminho não demorei para chegar até “Sangue no Olho”, romance da escritora chilena Lina Meruane, o primeiro da autora lançado por aqui pela finada Cosac Naify. Em seu romance acompanhamos Lucina, pseudônimos da própria autora, uma mulher que retorna ao Chile para uma cirurgia nos olhos. Lucina conviveu por muito tempo com o fato de que seus olhos eram sensíveis e seu oftalmologista a precavia para o pior: um derrame nos frágeis vasos sanguíneos ao redor do vítreo que poderia comprometer sua visão. Enquanto espera pela cirurgia, Lucina coloca a prova todo o possível novo cenário de sua vida, sua relação com a profissão, com a família e com seu namorado Ignácio, enredado na evolução da doença. O tal sangue no olho pode ser lido no próprio sentido figurado quando percebemos o ímpeto da personagem frente a doença. Lucina tem receio, mas também dispensa se tornar um fardo para todos os envolvidos, quer aprender a ser cega, quer experimentar a transição para as trevas, quer apreender os olhos e a falta deles.
É nessa transição entre a luz e as sombras, entre o visível e o sensível, entre o evidente e a dúvida, que Meruane constroi uma narrativa muito crua não sobre a cegueira, mas sobre os relacionamentos humanos. A tensão que existe ao passo que a visão falha é a tensão entre Lucina e a lealdade de Ignácio, Lucina e a impassividade sua mãe, Lucina e o pragmatismo de seu médico, Lucina e sua própria obstinação. As dúvidas da personagem permitem cenas que beiram a psicose e sua curiosidade toma forma em desejos incomuns, o que acompanhamos com algum arrepio na espinha. A escrita de Meruane é sagaz ao apresentar um processo de espera e de perdas que desemboca cruelmente no final do livro e se você tiver a sorte de ler a edição física, poderá ainda experimentar o projeto gráfico que sutilmente escurece as páginas ao longo da leitura, de modo que você também deverá estreitar seus olhos como a própria Lucina.
Obviamente que depois de “Sangue no Olho” eu quero ler tudo o que Meruane escreveu. Demorou algum tempo desde 2014 para que outros de seus títulos chegassem por aqui. Mas em pleno 2020 já temos uma boa mostra da diversidade de temas abordados pela autora como questões relacionadas a maternidade (“Contra os Filhos” pela Todavia) e a identidade palestina (“Tornar-se Palestina” pela Relicário) em livros de não-ficção. Fica a dica de uma boa leitura.