Diego Lunkes 18/07/2018
Um dos grandes desserviços que as histórias podem fazer é romantizar personagens e situações. Esta prática, tão arraigada na literatura, cria nos leitores expectativas que entram em conflito com situações do mundo real, normalmente levando a decepções quando as pessoas encontram problemas ao invés de finais felizes. E isso se agrava quando situações que deveriam ser inaceitáveis acabam, aos poucos, se tornando aceitas devido à lavagem cerebral cultivada a longo prazo através destas histórias.
Felizmente, este problema vem sendo cada vez mais discutido e histórias mais honestas surgem a fim de reparar os danos criados pela romantização. E este é o maior mérito do romance de Liane Moriarty.
"Pequenas Grandes Mentiras" apresenta uma história sob o ponto de vista de três personagens: Jane, Madeline e Celeste. Com o recurso de fragmentação da trama, a autora não induz o leitor a torcer por uma personagem em específica, o que já é um ponto positivo. Aliás, Moriarty faz questão de expor as falhas de todos os seus personagens. Além disso, aproveita esta fragmentação para discutir o tema da violência de diferentes ângulos, demonstrando como qualquer pessoa pode ser uma vítima e das mais diferentes maneiras.
"Ocorreu-lhe que havia muitos níveis de maldade no mundo. Maldades pequenas como suas palavras maldosas. Como não convidar uma criança para uma festa. Maldades maiores como abandonar a mulher e filha recém-nascida ou dormir com a babá do filho. E havia o tipo de maldade que […] não vivenciara: crueldade em quartos de hotel, violências em lares de classe média e menininhas sendo vendidas como mercadorias, destroçando corações inocentes."
A bola de neve de violência e mentiras que aumenta progressivamente na história tem seu estopim quando Jane busca seu filho, Ziggy, em seu primeiro dia no jardim de infância, onde o garoto é acusado por sua coleguinha, Ammabela, de tê-la estrangulado. Renata, a mãe da menina, embora consternada, está disposta a perdoar o ato de bullying desde que Ziggy peça desculpas para Ammabela. Porém, ele nega a acusação e, confiando em sua palavra, Jane sai em sua defesa. Embora compre a briga por seu filho, Jane não está segura de que Ziggy diz a verdade, isto porque a gravidez do garoto foi consequência de um ato de estupro no qual seu agressor a manteve imobilizada estrangulando-a. Esta associação do gesto de violência do agressor com o do filho, somada ao seu trauma e a sua insegurança, levam Jane a crer que Ziggy possa ter uma disposição para maldade que seja hereditária.
Enquanto praticamente todas as mães e professoras do jardim de infância hostilizam Jane, Madeline, mãe de Chloe, simpatiza com Jane e compra a briga contra Renata. Enquanto a trama das duas personagens se entrelaçam, em paralelo acompanhamos os demônios enfrentados pela própria Madeline. Casada pela segunda vez, Madeline mantém a guarda da filha adolescente do primeiro casamento, Abigail. Contudo, as constantes brigas com a filha rebelde fazem a garota escolher morar com o pai, Nathan, e a madrasta, Bonnie. A perda da preferência de sua filha representa uma angústia para Madeline, pois Nathan a abandonou ainda grávida de Abigail. A angústia torna-se ainda maior quando Nathan encena o papel do bom pai de família, basicamente fazendo pela a família de Bonnie tudo que deveria ter feito por Madeline e Abigail. Além de denunciar esta forma de agressão emocional, Liane Moriarty ainda expõe a estratégia utilizada pelo ex-marido que, quando confrontado com uma reação natural de raiva da esposa, tenta retratá-la como emocionalmente desiquilibrada para desviar o foco de suas culpas.
"Ex-maridos deveriam morar em outros bairros. Deveriam colocar seus filhos em outras escolas. Deveria haver leis para evitar situações como aquela. Não era para a pessoa lidar com sentimentos complicados de traição, mágoa e culpa no meio das gincanas dos filhos. Sentimentos como esses não deveriam ser expostos em público."
Após apadrinhar Jane, Madeline lhe apresenta sua amiga Celeste, que completa o tripé de apoio emocional que as personagens representam umas às outras. Enquanto Celeste tenta ajudar Madeline e Jane com seus problemas, ela própria luta contra a violência doméstica de seu marido, Perry. Neste núcleo da história, Liane demonstra como ocorre o ciclo vicioso de um relacionamento abusivo. Perry agride Celeste. Celeste defende-se agredindo Perry. Perry pede desculpas a Celeste, comprando presentes caros e lhe tratando da maneira mais amável possível. Até a próxima agressão, onde o ciclo recomeça.
"Mas era tão surpreendente que o homem bonito e ocupado que acabara de lhe oferecer uma xícara de chá e estava trabalhando no computador no outro cômodo, e que viria correndo se ela o chamasse, que a amava do fundo do seu coração estranho, provavelmente fosse matá-la."
Além de acertadamente refutar a romantização e expor de forma nua e crua as violências físicas, psicológicas e emocionais sofridas por suas personagens, Liane Moriarty ainda mostra como é possível tentar escapar destas situações na medida em que suas personagens começam a reagir à violência e se livrarem de seus problemas. Com isso, a autora praticamente dialoga com possíveis leitores vítimas destes abusos e oferente diferentes meios de combater diferentes tipos de violência. Pequenas Grandes Mentiras refuta a funcionalização da violência e o estereótipo da inimizade feminina, substituindo-os pela ideia de que as mulheres podem (e devem!) se unir para superar os seus problemas.
site: https://barbaliterata.wordpress.com/2018/07/18/pequenas-grandes-mentiras-2/